Qual foi a influência do aquecimento do planeta e das consequentes mudanças climáticas no desastre de Petrópolis? A resposta é ainda não sabemos porque nem todo evento extremo tem impacto de mudanças no clima geradas pelo ser humano. Sempre que há um desastre natural de grandes proporções e um evento meteorológico extremo há uma tendência natural de se relacionar o fato imediatamente às mudanças climáticas, mas a boa ciência não tem resposta pronta para todas as questões e é preciso examinar detidamente cada evento.
Embora esteja demonstrado por vários trabalhos científicos que o aquecimento do planeta esteja causando um aumento dos eventos de chuva extrema no Sul e no Sudeste do Brasil, somente um estudo de atribuição poderá determinar se as mudanças climáticas tiveram alguma contribuição e qual foi o nível de contribuição para o episódio em Petrópolis.
Estudos de atribuição mais aprofundados com análise de tempo de recorrência e simulações computadorizadas por reanálise podem determinar futuramente se houve influência das mudanças climáticas, mesmo que mínimas, logo a ciência não tem respostas prontas e imediatas. Recentes graves enchentes no Vietnã, por exemplo, não tiveram impacto significativo das mudanças do clima, mostrou estudo. Já as enchentes na Europa Ocidental de 2021 tiveram forte influência, de acordo com análise de atribuição.
O que se sabe, por estar cabalmente demonstrado na literatura técnica, é que eventos de chuva extrema tendem a se tornar mais recorrentes à medida que o planeta aquece. A questão fundamental é separar em cada episódio o que foi influência das mudanças climáticas antropogênicas do que é variabilidade natural do clima, o que é ainda mais difícil em se tratando deste evento por (1) Petrópolis possuir um longo histórico de episódios extremos de precipitação recorrentes no verão e com alto número de vítimas, (2) ter sido um evento de chuva extrema muito localizado que dificulta reanálise por modelos e (3) o evento ter sido de escala horária e não de dias ou semanas.
O que a estatística mostra ainda é que os eventos extremos de chuva têm aumentado na região do Rio de Janeiro. Segundo dados do Instituto Nacional de Meteorologia, há uma tendência nítida de aumento de eventos de chuva extrema na cidade do Rio de Janeiro, cerca de 70 quilômetros ao Sul de Petrópolis. A capital fluminense teve 5 dias com 80 mm ou mais em 24h na década de 60, 5 dias nos anos 70, 4 na década de 80, 8 nos anos 90 e na primeira década deste século, e 12 dias na década passada, numa clara tendência de aumento da frequência de episódios extremos de precipitação que é ponto de partida para qualquer análise de atribuição.
Por outro lado, a notícia de que se tratou da maior chuva em 90 anos na cidade em 24 horas deve ser vista com cautela e é um erro tomá-la como um fato. O Instituto Nacional de Meteorologia divulgou que a chuva medida de 259,8 mm em um pluviômetro do Centro Nacional de Prevenção de Desastres (Cemaden) superou o maior volume em 24 horas medido por uma estação do Inmet na localidade. O órgão esclareceu que “o valor de 168,2 mm de 20/08/1952 é de uma estação do Inmet que funcionou no município de Petrópolis entre 1932 e 1960”.
Ou seja, a comparação está sendo feita com base em uma estação que operou por apenas 30 anos e não possui dados entre 1961 e 2022, o que exclui do comparativo 1988 que registrou um grande desastre em Petrópolis. Além disso, a estação e o pluviômetro usados na comparação estão em locais distintos no município, o que é relevante porque a chuva que se abateu sobre Petrópolis não foi de uma supercélula (tempestade severa e de poucos minutos) e sim de natureza orográfica de quatro a seis horas (leia análise técnica do evento) com enorme variabilidade de volumes dentro de uma mesma localidade, o que explica que equipamentos na cidade tenham registrado entre 100 mm e 260 mm conforme o local do ponto de medição.
A Física dos extremos de chuva
Equipes de pesquisadores realizam avanços na compreensão do futuro de eventos de precipitação extrema ao redor do mundo graças a novos modelos supercomputadorizados de alta resolução. Os mais sofisticados sugerem que à medida que o mundo aquece, o risco de episódios de chuva muito volumosa aumenta, mas há muito ainda a se avançar no exame do impacto das mudanças no clima em eventos de escala horária e localizados, como de Petrópolis, diferentemente dos episódios de vários dias ou semanas como de Minas Gerais e Bahia.
A Física explica o processo que leva aos eventos extremos de chuva mais frequentes. Há um princípio físico conhecido como relação Clausius-Clapeyron que relaciona temperatura, pressão e vapor d’água. O princípio mostra que o ar mais quente pode reter mais vapor de água com cerca de 7% a mais de vapor de água por 1ºC de aquecimento. Quanto mais quente a atmosfera, mais vapor d’água reterá e mais vapor significa mais umidade disponível para se precipitar como chuva, o que leva a taxas de chuva mais altas. O mesmo, paradoxalmente, ocorre em tempestades de neve.
Em média, o planeta já aqueceu mais de 1ºC desde os tempos pré-industriais, de acordo com o relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas divulgado em 2021. O relatório explica que o aumento das temperaturas controla “as mudanças no vapor de água por meio do aumento da evaporação e da capacidade de retenção de água da atmosfera”.
Em escala global, o conteúdo de vapor d’água “aumenta aproximadamente seguindo a relação Clausius-Clapeyron (C-C), com um aumento de aproximadamente 7% por 1ºC de aquecimento”. “As projeções dos modelos climáticos mostram que o aumento do vapor de água leva a aumentos robustos nos extremos de precipitação em todos os lugares, com uma magnitude que varia entre 4% e 8% por grau Celsius de aquecimento da superfície”, diz o IPCC.
No entanto, existem “vários casos indicando que a precipitação muito extrema pode aumentar a uma taxa maior do que a taxa C-C”, observa o relatório. O aquecimento do clima também pode afetar processos “dinâmicos” na atmosfera, segundo o IPCC, como a frequência e intensidade dos ciclones, frentes e sistemas convectivos.
O número de estudos sobre projeções de chuvas extremas em escala horária “é limitado”, observa o Painel Intergovernamental de Mudanças Climática da ONU. As simulações por modelos climáticos regionais, que são capazes de simular processos convectivos conhecidos como modelos de permissão convectiva, são “limitados e apenas disponíveis em algumas regiões por causa dos altos custos de processamento por computação”.
O relatório, entretanto, destaca que “a maioria das simulações de permissão de convecção disponíveis projetam aumentos nas intensidades de eventos extremos de precipitação subdiária com uma quantidade semelhante ou superior à taxa de escala C-C”.
Pior cenário antes do previsto
Os impactos das chuvas extremas podem ser mais frequentes e severos do que se pensava anteriormente, de acordo com a análise de novo modelo climático de última geração e maior resolução, segundo o Met Office, o serviço meteorológico do Reino Unido. A nova geração de modelos climáticos e a última avaliação do IPCC (AR6) forneceram uma nova luz para olhar para as recentes inundações catastróficas vistas em todo o mundo e o que poderia ser esperado no futuro.
Em um exemplo gritante, novos cálculos usando um cenário de altas emissões com cerca de 3°C de aquecimento até 2070 mostram que em Glasgow, onde ocorreu a COP26, o número de dias em que 30 mm ou mais de chuva são registrados em apenas uma hora pode ser 3,5 vezes mais provável na década de 2070 do que na década de 1990. Em Londres, precipitação de 30 mm por hora pode ser tornar 2,5 vezes mais provável.
A marca de 30 mm de chuva em uma hora é um limite normalmente utilizado para acionar avisos de alagamentos e inundações repentinos. Os resultados sugerem um grande aumento na frequência de eventos de chuva que produzem enchentes repentinas. Embora o cenário de altas emissões seja maior do que o resultado esperado da COP26, cenários plausíveis de altas emissões como este são rotineiramente usados para avaliação de risco de longo prazo.
Os eventos de inundação recentes mostram que há uma urgência maior do que se pensava anteriormente em reduzir as emissões e preparar as sociedades para torná-las mais resistentes a eventos extremos de chuva. Essas novas projeções climáticas estão ajudando organizações e pessoas a melhorar sua resiliência a enchentes.
Além do aumento da precipitação de alta intensidade, o número de dias em que são registrados 80 mm de chuva em 24 horas pode se tornar 4,5 vezes mais provável em Glasgow até 2070 em um cenário de altas emissões. Esta é a primeira vez que cenários climáticos nacionais recebem uma resolução sobre modelos de previsão do tempo.
Os eventos de inundação no mundo nos últimos 12 meses incluem enchentes devastadoras na Europa Central durante o verão de 2021, inundações no subsolo de Londres em julho de 2021 e em Zhengzhou, China, no mesmo mês. No evento da Europa Central, algumas áreas tiveram até dois meses de chuva em dois dias. Nova York e outras áreas do Nordeste dos Estados Unidos enfrentaram graves inundações com chuva intensa sem precedentes em curto período. Na América do Sul, Quito enfrentou em janeiro de 2022 sua pior chuva em décadas.
Além do aumento na intensidade da chuva por hora, a última geração de modelos climáticos de alta resolução também mostra a ocorrência de tempestades mais duradouras que podem levar a grandes acúmulos de chuva, com altas taxas de precipitação sustentadas por várias horas. Isso tem sérias consequências para a mudança do risco de inundação, como foi visto na Europa Central no verão e agora em Petrópolis.