O mês de novembro começou com uma onda de temperatura baixa absolutamente incomum para esta época do ano. Uma grande massa de ar frio de atípica intensidade e abrangência para novembro avançou pela América do Sul, derrubando a temperatura. O Sul do país anotou marcas negativas, formação de geada nos três estados com prejuízos para a agricultura e ainda uma sem precedentes queda de neve em pleno mês de novembro.

O frio incomum, entretanto, não se limitou a este começo de novembro. A primavera deste ano tem sido marcada por temperatura abaixo do que é normal para esta época do ano. Basta ver que o número de dias de calor na estação até agora foram poucos no Sul do país e que os de temperatura baixa numerosos. A estação, aliás, já em suas primeiras horas, no dia 22 de setembro, teve uma nevada em Santa Catarina com acumulação que é muito raro.

Todo este padrão de duas ocorrências de neve em plena primavera, geada muito tardia e frio até o penúltimo mês do ano acompanha o terceiro ano seguido com o fenômeno La Niña no Oceano Pacífico. O resfriamento do Pacífico Equatorial voltou a se intensificar na primavera agora, especialmente em outubro nas costas do Peru e do Equador.

A anomalia de temperatura da superfície do mar na denominada região Niño 1+2, nas costas do Peru e do Equador, chegou a ter valores de -2,0ºC em outubro, o que está no patamar de La Niña costeira muito forte ou Super La Niña costeira. Desde 1999 não se via um resfriamento tão intenso desta parte do Pacífico Equatorial nesta época do ano, o que acabou por impactar o clima com temperatura baixa no Sul do Brasil.

Esta primavera fria e o começo de novembro de temperatura muitíssimo abaixo do normal para esta época do ano acabou por instigar a curiosidade se o verão que está chegando em poucas semanas vai manter a temperatura abaixo do normal ou compensará a primavera fria com muito alta temperatura.

A grande onda de calor do último verão

O Rio Grande do Sul, parte da Argentina e o Uruguai experimentaram uma onda de calor de proporções históricas no último verão. Janeiro foi marcado por um episódio de calor extremo que trouxe vários recordes e máximas jamais vistas em algumas cidades gaúchas, uruguaias e argentinas. O recorde oficial de calor do Rio Grande do Sul que resistiu por quase 80 anos acabou caindo.

Anomalia de temperatura no mês de janeiro de 2022 no Brasil | INMET

Na rede do Instituto Nacional de Meteorologia foram 13 dias consecutivos em que as máximas bateram em 40ºC no Rio Grande do Sul em janeiro de 2022. Fez 41,5ºC em Quaraí no dia 12; 41,7ºC (recorde absoluto de 110 anos) em Bagé no dia 13; 40,8ºC em Bagé no dia 14; 40,6ºC em Uruguaiana no dia 15; 41,8ºC em Uruguaiana dia 16; 40,2ºC no dia 17 em Teutônia; 41,1ºC em Santa Rosa em 18 de janeiro; 41,5ºC em São Luiz Gonzaga no dia 19; 42,1ºC em Uruguaiana no dia 20; 41,8ºC dia 21 em Uruguaiana; 41,6ºC dia 22 em Uruguaiana; 42,1ºC dia 23 em São Luiz Gonzaga; 41,2ºC dia 24 em São Luiz Gonzaga; 39,6ºC dia 25 em São Luiz Gonzaga; e 39,5ºC dia 26 em Campo Bom.

Já estações automáticas particulares e de outros órgãos apontara marcas de 42,3ºC em Santa Rosa no dia 25 de janeiro e de 40,7ºC em Parobé no dia 26 de janeiro, quando a rede oficial não apontou máximas superiores a 40ºC. Com isso, o Rio Grande do Sul completou 15 dias seguidos em que as temperaturas máximas no território gaúcho ultrapassaram a marca dos 40ºC, o que muito provavelmente não tenha precedentes desde o começo das medições meteorológicas regulares no Estado em 1909.

No dia 27 de fevereiro, o Rio Grande do Sul registrou a maior máxima de sua história com 42,9ºC na estação do Instituto Nacional de Meteorologia em Uruguaiana. A marca passa a ser o novo recorde oficial absoluto de temperatura máxima no Rio Grande do Sul, superando os recordes anteriores de 42,6ºC em Alegrete em 19/1/1917 e em Jaguarão em 1º de janeiro de 1943. Trata-se também do novo recorde oficial de calor para fevereiro no Rio Grande do Sul. E, ainda, recorde absoluto de máxima para fevereiro e qualquer mês do ano em Uruguaiana, batendo as marcas de 42,2ºC de1986 e 42,0ºC de 1943.

O Uruguai teve em 14 de janeiro a maior temperatura da sua história. De acordo com o Instituto Uruguaio de Meteorologia (Inumet), a temperatura máxima em Florida chegou a 44,0ºC, o que igualou o recorde absoluto nacional de máxima de 44,0ºC de 20 de janeiro de 1943. Na Argentina, a cidade de Buenos Aires teve dois dos três dias mais quentes de toda série histórica em apenas uma semana em janeiro.

Seca como feedback de calor extremo

A onda de calor de janeiro no Cone Sul da América do Sul e a onda de calor da Europa em julho tiveram em comum enormes déficits de chuva. As bacias do Rio Paraná e da Prata enfrentaram em 2021 a maior seca desde a década de 40 antes do verão escaldante deste ano no Sul do país, Uruguai e Argentina. Quando a onda de calor de janeiro ocorreu, a região estava sob estiagem forte a severa em muitos locais com índices excepcionais em alguns pontos.

O calor extremo na Europa em julho deste ano também se dá sob uma seca severa, a pior em mais de meio século em alguns países em um dos verões mais secos que se tem memória. Alertas de seca foram emitidos para grande parte do continente, incêndios expulsaram os moradores de suas casas e grandes rios estão secando. “Estamos vendo, realmente, uma seca sem precedentes em muitas partes” da Europa, disse Carlo Buontempo, diretor do Serviço de Mudança Climática Copernicus da União Europeia.

As temperaturas extremas secam ainda mais o solo superficial já com umidade escassa. A onda de calor também faz com que árvores suguem água do subsolo mais profundo enquanto tentam sobreviver, esgotando o lençol freático do qual agricultores, cidades e natureza dependem como reserva durante os períodos de seca. Na bacia do rio Po, no Norte da Itália, que abriga um terço da população do país, chove pouco ou nada há mais de 200 dias. A seca ainda afeta Portugal, Espanha, Reino Unido, Alemanha e Suíça.

Ondas de calor intensas ocorrem nos meses quentes do ano com ou sem estiagem, em verões secos ou chuvosos, mas, historicamente, se observa que os episódios de calor mais extremo se dão durante estiagens ou secas. Isso por um processo de interação terra-atmosfera em que a estiagem deixa a atmosfera ainda mais seca e, com o ar mais seco, a temperatura se eleva mais em mecanismo de feedback positivo. A literatura técnica explica tal processo:

“A compreensão atual da física por trás das secas meteorológicas e ondas de calor sugere que anomalias de circulação em grande escala persistentes semelhantes são críticas para o início de ambos os eventos, o que explica em parte por que os extremos frequentemente coincidem. Feedbacks terrestres-atmosféricos semelhantes têm sido sugeridos como centrais em sua evolução, mesmo se as secas e ondas de calor frequentemente abrangem escalas temporais diferentes, sendo as últimas tipicamente mais curtas (dias a semanas) do que as primeiras (meses a anos). Esses feedbacks são intuitivos: conforme o solo e a vegetação secam, a evaporação da terra (ou evapotranspiração) é reduzida, portanto, o ar se torna ainda mais seco, o que pode diminuir ainda mais a probabilidade de chuva e favorecer a ocorrência de secas meteorológicas. Concomitantemente, conforme a evaporação declina progressivamente, uma fração maior da radiação incidente é empregada para aquecer o ambiente, o que leva a um acúmulo de calor sensível na atmosfera que pode evoluir para uma onda de calor ou exagerar sua magnitude”. (Miralles D G, Gentine P, Seneviratne S I and Teuling A J 2019 Land–atmospheric feedbacks during droughts and heatwaves: state of the science and current challenges Ann. N. Y. Acad. Sci. 1436 19–35)

Foi exatamente o que ocorreu na extraordinária onda de calor que assolou o Noroeste dos Estados Unidos e British Columbia (Canadá), com centenas de mortes em junho do ano passado, para muitos especialistas a onda de calor mais excepcional já documentada pelos imensos desvios da temperatura em relação à média. O episódio se deu em meio a um ciclo de seca excepcional e incêndios que afetava o Oeste da América do Norte. O calor exacerbou a seca e agravou os incêndios que agravaram o calor.

Na própria Europa, o continente registrou a mais alta temperatura da sua história com 48,8ºC em Siracusa, na Sicília, no Sul da Itália, no mês de agosto, em 2021. O recorde se deu durante uma poderosa onda de calor que foi batizada localmente de Lúcifer e em meio a um quadro de seca e grande número de incêndios na costa do Mediterrâneo. Verkhoyansk, uma cidade na Sibéria, registrou 38ºC em 20 de junho de 2020. A Organização Meteorológica Mundial (OMM) confirmou que a cidade siberiana, 115 quilômetros ao Norte do Círculo Polar Ártico, experimentou a temperatura mais alta já registrada no Ártico. O recorde se deu com seca severa na região.

Os sinais para o nosso próximo verão

Se as ondas de calor de janeiro no C9ne Sul da América do Sul e de junho e julho na  Europa forem vistas por um contexto de aquecimento planetário que favorece ondas de calor mais intensas e frequentes, é sinalização de que o nosso verão pode voltar a ser muito quente e com risco de novos extremos de temperatura, embora não necessariamente com a mesma proporção de janeiro de 2022. A estatística é clara em mostrar uma tendência de aquecimento cada vez maior em países como Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai.

Anomalia de temperatura ano a ano por décadas entre 1961 e 2020 na Argentina | SMN

Ocorre que um padrão de enorme importância de escala global presente hoje e que favorece escassez de chuva em muitas regiões deve estar ainda presente no final de 2022 e no início de 2023. Trata-se do fenômeno La Niña. A esmagadora maioria das projeções indica que parte do verão deve seguir com a La Niña presente no Pacífico com tendência de evolução para neutralidade no decorrer da estação quente.

Assim, com o risco agravado de períodos secos (não se projeta estiagem igual a 2022) pela continuidade do fenômeno La Niña até o fim do ano e o começo de 2023, sob um contexto global de aquecimento de longo prazo que favorece verões mais quentes, cresce também a possibilidade de ondas de calor de intensidade muito forte.

O que os modelos mostram para o verão

Os modelos numéricos de previsão climática anteciparam o padrão de temperatura baixa nesta primavera e ainda em setembro mostravam várias semanas seguidas de marcas abaixo da média com frio tardio e calor escasso. Os mesmos modelos não indicam que o verão deve ser de marcas amenas.

Ao contrário, a tendência apontada para pontos mais ao Sul do Brasil é de temperatura acima da média nos meses tradicionalmente mais quentes da estação. Isso porque o indicativo é de ar muito quente atuando no Centro da Argentina com repercussão no Uruguai e no Rio Grande do Sul. Veja as projeções de anomalia de temperatura do modelo climático norte-americano para janeiro e fevereiro.

Sinalização muito semelhante tem o NMME, ou North American Model Ensemble, conjunto de modelos climáticos dos Estados Unidos e do Canadá. O modelo aponta um verão muito quente no Centro da Argentina, nas províncias de Córdoba, Buenos Aires, Santa Fé e Entre Ríos, com impacto na temperatura mais ao Sul do Brasil com marcas mais elevadas no Rio Grande do Sul.

O cenário que se esboça, assim, é de um verão com o calor típico do verão gaúcho e com alta probabilidade de alguns períodos muito quentes com prováveis ondas de calor. Isso, entretanto, não significa que os gaúchos vão experimentar calor tão extremo como em janeiro de 2022.

Buscando referências históricas, nas últimas três décadas, três anos tiveram frio muito tardio em novembro. Foram os anos de 1992, 2007 e 2010. Em 1993, janeiro e fevereiro registraram temperatura perto da média histórica. Em 2008, cenário semelhante com temperatura acima da média no Oeste gaúcho e abaixo no extremo Sul do estado. Em 2011, janeiro transcorreu com temperatura perto da média e fevereiro também, exceção de áreas mais ao Norte gaúcho que anotaram marcas abaixo da média por chuva muito frequente.