A memória do furacão Andrew, de 1992, ainda assombra os moradores do Sul do estado norte-americano da Flórida. Foi um evento catastrófico na região. O furacão de categoria 5 atingiu as Bahamas, Flórida e Louisiana. É o furacão mais destrutivo a ter atingido o estado da Flórida até hoje em número de estruturas danificadas ou destruídas e o que trouxe mais prejuízo nos Estados Unidos antes de ser superado por Irma 25 anos depois.

Furacão Andrew arrasou o Sul do estado norte-americano da Flórida no final de agosto de 1992 | THOM SCOTT/ARQUIVO AFP/METSUL METEOROLOGIA

Andrew também foi o furacão mais intenso a alcançar os Estados Unidos em décadas. Além disso, o ciclone tropical de 1992 foi um dos quatro únicos ciclones tropicais a tocar terra na costa continental norte-americana como categoria 5, juntamente com o furacão do Dia do Trabalho de 1935, Camille de 1969 e Michael de 2018.

Embora a tempestade também tenha causado grandes danos nas Bahamas e na Louisiana, o maior impacto foi sentido no Sul da Flórida, onde a tempestade atingiu a costa como um furacão de categoria 5, com velocidades de vento sustentadas de 1 minuto de até 265 km/h e rajadas de até280 km/h.

Passando diretamente pela cidade de Homestead, no Condado de Dade (agora conhecido como Condado de Miami-Dade), o furacão destruiu muitas casas, exceto suas fundações de concreto e causou danos catastróficos. No total, Andrew destruiu mais de 63.500 casas, danificou mais de 124.000 outras, causou 27,3 bilhões de dólares em danos (equivalente a 54 bilhões de dólares em 2023) e deixou 65 pessoas mortas.

Andrew começou como uma inofensiva depressão tropical sobre o Oceano Atlântico, a milhares de quilômetros da Flórida, no dia 16 de agosto. Após uma semana sem maior intensificação sobre o Atlântico, o ciclone rapidamente se intensificou ao se aproximar das Bahamas, quando enfraqueceu brevemente para categoria 4, e recuperou a intensidade da categoria 5 pouco antes de atingir a Flórida, em Elliott Key e depois em Homestead, em 24 de agosto. A escolha de Andrew como exemplo se justifica, assim, por ter sido o furacão mais devastador do estado norte-americano da Flórida.

Muitos recordam dos alertas de furacões na Flórida sempre há um evento de desastre ou catástrofe por fenômenos naturais, como chuva extrema, no Brasil e os avisos oficiais das autoridades são falhos. Comparar alertas de furacões no estado norte-americano com de chuva extrema no Brasil é, contudo, um erro. Por quê?

Andrew, por exemplo, era um ciclone tropical formado por uma semana antes de atingir o Sul da Flórida. Durante sete dias os meteorologistas puderam monitorar a tempestade, ter imagens de satélite e radar, acesso a dados coletados no centro da tempestade por voos de reconhecimento dos aviões caça-furacões, etc.

Trajetória de Andrew que passou uma semana sobre o mar antes de chegar ao Sul da Flórida | WIKIPEDIA

Diferentemente, no caso da chuva extraordinária do litoral de São Paulo, quando choveu quase 700 mm em poucas horas, o evento só se tornou visível quando a chuva começou a cair sobre a região. Não foi uma área de chuva extrema que avançou de qualquer lugar para a costa de São Paulo.

A precipitação extraordinária se formou no local onde caiu, e antes de vir o dilúvio só era possível visualizá-la por simulações de computador, os modelos numéricos, que neste tipo de evento subestimam, acertam ou superestimam a intensidade da chuva.

Foi um fluxo de umidade bastante forte do mar para o continente com ar frio incomum no Sul do Brasil e uma baixa pressão menor na costa paulista que gerou chuva orográfica, não raro extrema, porque a umidade do mar encontra a barreira da Serra e se transforma em precipitação. É chuva associada ao relevo que é o principal fator para que ocorram volumes extremos.

Chuva de quase 700 mm deixou dezenas de mortos em deslizamentos de terra no município costeiro paulista de São Sebastião | GOVERNO DE SÃO PAULO

Outra enorme diferença. Um furacão é fenômeno com centenas de quilômetros de diâmetro (diferente de um tornado que é de metros). O seu campo de vento, com intensidade de furacão ou tempestade tropical, cobre enorme área.

A chuva extraordinária no litoral de São Paulo se concentrou numa área menor entre a Baixada Santista e o Litoral Norte, notadamente entre o Guarujá e São Sebastião. Não houve volumes excepcionais no Litoral Sul paulista, na Grande São Paulo que é geograficamente próxima, mais ao Norte do Litoral de São Paulo e tampouco no Sul do Rio de Janeiro.

O que pode ser comparado entre Estados Unidos e Brasil

Se os fenômenos não podem ser comparados, porque de natureza radicalmente distinta e que permitem tempo de respostas diferentes, o mesmo não pode ser dito sobre a comunicação de riscos à população, pelos setores público e privado, e pela cultura meteorológica.

Justamente a cultura meteorológica é a base de todas as diferenças que existem entre os Estados Unidos e o Brasil. O país da América do Norte tem o clima mais extremo do planeta. Sofre com furacões, tem o maior número de tornados do mundo, experimenta ondas de calor com mais de 50ºC, ondas de frio com 50ºC abaixo de zero, nevascas, tempestade de gelo, secas, enchentes, cinzas vulcânicas (caso do Alasca e Monte Santa Helena), etc.

Isso levou à formação de uma cultura meteorológica e de prevenção, embora não perfeita, da base da sociedade aos mais altos escalões de governo. A Meteorologia pública está muito mais estruturada que no Brasil pela NOAA, a Administração Nacional de Oceanos e Atmosfera, com seu Serviço Nacional de Meteorologia (NWS). Os aportes bilionários em investimentos sequer podem ser comparados.

Administrador do Centro Nacional de Furacões e a vice-presidente dos Estados Unidos Kamala Harris falam na sede do NHC sobre tempestade que atingiria a Flórida | CHANDAN KHANNA/AFP/METSUL METEOROLOGIA

Meteorologista monitora avanço de ciclone tropical no Centro Nacional de Furacões de Miami | CHANDAN KHANNA/AFP/METSUL METEOROLOGIA

Presidente dos Estados Joe Biden recebe um briefing da Meteorologia e da agência federal de emergências no Salão Oval da Casa Branca sobre a onda de frio do Natal de 2022 que deixaria dezenas de mortos no país dias depois | BRENDAN SMIALOWSKI/AFP/METSUL METEOROLOGIA

Há um centro especializado em tempestade severas e tornados (SPC) e outro dedicado apenas a ciclones tropicais, o conhecido Centro Nacional de Furacões (NHC na sigla, em inglês). Estes dois centros reúnem meteorologistas especializados e que se dedicam a estudar ou prever só o tipo de fenômeno que estão trabalhando diariamente.

Não bastasse, o National Weather Service possui 122 escritórios locais de previsão e seis centros regionais. A Flórida, por exemplo, possui seis escritórios de previsão (Jacksonville, Key West, Melbourne, Miami, Tallahassee e Tampa), além do Centro Nacional de Furacões em Miami. São escritórios que operam 24 horas por dia e trabalham com equipes reforçadas em momentos de crise ou grave risco.

A multiplicidade de centros permite ainda que os meteorologistas destes escritórios locais sejam especialistas e grandes conhecedores das particularidades do clima local onde atuam, acumulando uma experiência que faz muita diferença ao prognosticar toda a sorte de situações extremas porque muitas vezes já passaram por quadros semelhantes.

Escritório do Serviço Nacional de Meteorologia dos Estados Unidos em Norman, Oklahoma, que atua em algumas das piores ondas de tornados do país | NWS/DIVULGAÇÃO

No Brasil, o Instituto Nacional de Meteorologia, que por sucessivos governos enfrenta cortes orçamentários, possui apenas oito distritos. O oitavo, cobre os três estados do Sul do Brasil, a região que habitualmente sofre com a maior variedade de fenômenos severos ou situações meteorológicas extremas em condição que mais se aproxima dos Estados Unidos. Tais centros, além de serem pouco numerosos, não operam 24 horas por dia, embora contem com profissionais muito qualificados.

As diferenças não param por aí. O público tem um nível de atenção com a Meteorologia muito maior. Há uma cultura meteorológica mais enraizada na sociedade. O que se reflete na mídia que leva para as manchetes dos jornais e telejornais os alertas da Meteorologia em situações de grave risco, e dedica ainda generosos espaços em seus telejornais para a previsão do tempo. Tanto que os Estados Unidos possuem quatro canais de televisão a cabo dedicados apenas para previsão do tempo: Weather Channel, Weather Nation, Fox Weather e AccuWeather.

Meteorologista do estado norte-americano da Georgia informa em tempo real a posição de tornado durante cobertura especial de onda de tempestades no Sul dos Estados Unidos | WSBTV/REPRODUÇÃO

Tem mais. As emissoras locais de televisão possuem equipes de meteorologistas. O público vê os prognósticos apresentados por meteorologistas, profissionais certificados, que possuem um amplo domínio do que estão apresentando. É o que permite que canais locais deixem de exibir programação nacional para levar ao ar coberturas especiais ininterruptas sobre ondas de tornados ou furacões em que os meteorologistas das emissoras passam muitas horas seguidas na tela mostrando o que está acontecendo e ainda por vir com recursos de visualizações de dados (satélite, modelos, radar e descargas elétricas, por exemplo) que são estado da arte.

Painel em rodovia dos Estados Unidos alerta para o perigo potencial de inundações repentinas em iniciativa da agência federal de emergências (FEMA) | DIVULGAÇÃO

A forma como os avisos graves são massificados também é diferente, muito diferente. Aqui no Brasil, alertas da Defesa Civil são transmitidos por celular via SMS, mas apenas para quem se cadastrou. E os textos via de regra são padronizados, seja a previsão de chuva de 100 mm (baixo impacto) ou 500 mm (catastrófica).

Nos Estados Unidos, ao contrário, com décadas de investimento e aprimoramento com testes rotineiros, há o Sistema de Alerta de Emergências (EAS) em que avisos são disparados para todos os celulares que estão na área indicada como de risco, esteja ou não a pessoa cadastrada.

REPRODUÇÃO

Trata-se do WEA (Wireless Emergency Alerts) que emite alertas por tsunami, vento extremo, inundação repentina, furacão, tufão (Estados Unidos possuem ilhas no Pacífico), nevascas, etc. O sistema do EAS ainda tem sirenes, um sistema construído na Guerra Fria ante o risco de ataques nucleares, e avisos são exibidos em painéis de trânsito em ruas e rodovias.

 MetSul alertou para o desastre em São Paulo

Embora se diga que a previsão de chuva acima de 500 mm para o litoral de São Paulo era “impossível” de ser feita, a MetSuL advertiu para volumes extraordinários na região e indicou as cidades que foram as mais castigadas, assim como para os riscos de o evento coincidir com grande concentração de pessoas nas praias e estradas, como na Rio-Santos que foi parcialmente destruída. Com base em seus recursos tecnológicos e a experiência da equipe em eventos extremos de precipitação orográfica (induzida pelo relevo) no Sul do Brasil, a MetSul Meteorologia foi o único serviço de previsão do tempo a antecipar a chuva de 700 mm.

Os volumes extremos confirmaram as projeções dos modelos de alta resolução da MetSul que ao longo da semana que passou indicavam acumulados de precipitação de até 500 mm ou mais na área mais afetada pela chuva, o que levou à emissão de um alerta na sexta de que o fim de semana poderia ter chuva excepcional da região entre a costa e a Serra do Mar.

Na sexta à noite, as projeções dos nossos modelos computadorizados aumentaram a chuva para até 700 mm e em um segundo alerta  no começo do sábado se advertia para volumes possíveis de até 500 mm a 700 mm, ponderando-se que em se tratando de chuva orográfica (associada ao relevo) não raro acaba chovendo até mais que o indicado pelo modelos numéricos.

Na sequência, no começo da madrugada do domingo, com a chuva extrema já se registrando, uma terceira advertência da MetSul de que o cenário era excepcionalmente grave e que o quadro deveria piorar ainda mais com mais intensas precipitações.