O calor incomum, sem precedentes e histórico que atinge as latitudes médias da América do Sul neste mês de março é parte de um padrão também nada comum que provoca um aquecimento anormal do planeta neste mês até agora com temperatura muito acima do que poderia se esperar sem a presença do fenômeno El Niño na média planetária. O episódio de calor extremo entre Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul não é o único e eventos de temperatura alta muito fora do normal atingem diverssos países em vários continentes.

Buenos Aires quebrou duas vezes seu recorde de calor para março da série histórica de 117 anos em apenas dez dias | LUIS ROBAYO/AFP/METSUL METEOROLOGIA

Uma onda de calor castiga a Argentina, o Uruguai e parte do Rio Grande do Sul desde o início deste mês. A temperatura está tão acima do normal que forçou o Serviço Meteorológico Nacional da Argentina a alterar a sua escala de cores para representar as anomalias na região de Buenos Aires.

A temperatura máxima média na cidade de Buenos Aires nos primeiros treze dias de março ficou em 35,4ºC, o que significa 8,4ºC acima da média máxima histórica de março na capital argentina que é de 27ºC.

Os termômetros indicaram máximas oficiais no observatório central de Buenos Aires acima de 30ºC todos os dias do mês até agora. Foram sete dias acima de 35ºC, três acima de 37ºC e dois de 38ºC ou mais no período.

A cidade de Buenos Aires quebrou seu recorde de temperatura máxima para o mês de março duas vezes até agora neste mês. No dia 2, a temperatura atingiu 38,0ºC na cidade de Buenos Aires. Foi, então, a maior marca observada em março desde o começo das medições em 1906 na cidade. A marca superou o recorde anterior de 37,9ºC de 7 de março de 1952.

Se o recorde da década de 50 permaneceu intocado por 70 anos, o recorde do dia 2 de março deste ano durou apenas dez dias. Isso porque a máxima do sábado (11) superou a registrada dez dias antes com a intensificação do calor no Centro da Argentina e chegou a 38,9ºC.

Temperatura máxima na cidade de Buenos Aires em março de 2023: 

1º/3: 37,6ºC
2/3: 38,0ºC
3/3: 35,4ºC
4/3: 36,3ºC
5/3: 32,8ºC
6/3: 33,6ºC
7/3: 33,0ºC
8/3: 33,7ºC
9/3: 33,3ºC
10/3: 36,8ºC
11/3: 38,9ºC
12/3: 36,5ºC
13/3: 34,6ºC

O Aeroporto Internacional de Ezeiza, na Grande Buenos Aires, anotou máxima no dia 11 de 39,6ºC, a maior já observada em março na estação e a quarta vez em que o recorde foi batido neste mês. No dia 10, a máxima de Ezeiza foi de 39,4ºC. Foi quando pela terceira vez neste mês caiu o recorde de temperatura máxima na estação para março. O recorde de março já havia sido quebrado no dia 1º com 38,1ºC e no dia 2 com 39,1ºC.

Onda de calor não tem precedentes na Argentina em duração e intensidade nesta época do ano | LUIS ROBAYO/AFP/METSUL METEOROLOGIA

O Uruguai também enfrenta um março absurdamente quente até agora com anomalias quase 10ºC acima do normal no Sudoeste e no Oeste do país. O mesmo ocorre no Rio Grande do Sul, onde na região de Uruguaiana as máximas estão 6ºC acima da média histórica do mês nos primeiros treze dias do mês.

Desde o começo do mês, a cidade de Quaraí, no Oeste, teve sete dias acima de 37ºC, quatro dias acima de 38ºC e um com mais de 39ºC. Quaraí anotou 37,4ºC no dia 1º; 30,0ºC no dia 2; 28,4ºC no dia 3; 33,9ºC no dia 4; 34,7ºC no dia 5; 33,4ºC no dia 6; 34,7ºC no dia 7; 37,0ºC no dia 8, 39,5ºC no dia 9; 38,1ºC dia 10; 38,7ºC no dia 11; 37,6ºC no dia 12; e 38,2ºC hoje.

Temperatura muito acima do normal no resto do mundo

Sempre que se olha o mapa de anomalia (desvio da média) de temperatura ao redor do mundo se encontrará áreas do planeta com temperatura abaixo ou acima da média. Em qualquer dia, em qualquer mês, o ano todo.

O Oeste dos Estados Unidos, por exemplo, teve um começo de março mais frio do que o normal com sucessivas tempestades de inverno que trouxeram quantidades de neve impressionantes e acumulações extraordinárias.

KARSTEN HAUSTEIN

Olhando para o planeta inteiro, entretanto, não apenas se observa muitas áreas em que as temperaturas estão acima da média como em enormes regiões do globo a temperatura está muitíssimo acima do normal com ondas de calor em pleno inverno astronômico em países do Hemisfério Norte.

No continente americano, além da onda de calor nas latitudes médias da América do Sul, o Sudeste dos Estados Unidos teve temperatura excepcionalmente alta até agora em março com recordes.

Na África, temperaturas muito acima do normal foram observadas tanto no Sul como no Norte do continente. Na África Subsaariana, a temperatura subiu a 45,4°C em Matam, no Senegal, a maior temperatura até agora no ano no Hemisfério Norte. Fez ainda 44ºC no Mali.

O calor do Norte africano chegou à península ibérica, na Europa, com marcas de verão na Espanha, onde muitas estações passaram de 30ºC em pleno março. O aeroporto de Zaragoza bateu seu recorde de máxima de março dom 28,6ºC. Várias cidades francesas anotaram marcas que são mais comuns em julho e que são recordes para março.

A maior onda de calor em dimensão está na Ásia. Grande parte do continente asiático está com temperatura muito acima da normal até o momento em março e por ser a região da Terra com maior massa de terra isso contribui para que o planeta esteja muito mais quente do que o normal neste mês.

Centenas de recordes de máximas para março caíram na China. Quase 600 estações tiveram as suas maiores temperaturas já observadas neste mês. Recordes de temperatura caíram ainda em outros países, incluindo Japão, Coréia do Sul, Turcomenistão, Uzbequistão, Tadjiquistão, Cazaquistão e no Quirguistão.

Temperatura dispara no mundo em terra e mar

Esta coincidência de ondas de calor de grande intensidade em diversos países e em diferentes continentes ao mesmo tempo fez com que a temperatura média global desse um salto neste mês. A subida no gráfico de temperatura média planetária é espantosa nestes últimos dias.

RYAN MAUE

O aquecimento que se observa neste mês de março no mundo só encontra paralelo nos últimos anos em breve período no ano de 2020 e está próximo, apesar de ainda abaixo, dos níveis de 2016, quando um evento de Super El Niño trouxe as maiores médias de temperatura global desde o começo dos registros. O fenômeno El Niño tem como efeito aquecer o planeta.

RYAN MAUE

Mas não para por aí. Estas são ondas de calor que ocorrem na atmosfera e medidas em terra. O problema é que os oceanos também estão muito mais quentes do que o normal nestes dias. E em patamar sem precedentes para esta época do ano.

A temperatura média global dos oceanos entre 60ºN e 60ºS neste momento está mais alta para março do que em 2016, quando do Super El Niño, o que é espantoso porque recém se saiu de um La Niña e ainda não há um El Niño configurado.

CLIMATE REANALYZER

“Maluco pensa o que acontecerá quando o El Niño vier nos próximos meses”, escreveu Ryan Stauffer, cientista do Goddard Space Flight Center, da NASA. A preocupação do pesquisador da agência espacial norte-americana se justifica, afinal se logo ao término de um evento de La Niña os oceanos batem recordes de temperatura, com El Niño os extremos tendem a ser ainda maiores.

O que pode estar causando esta anomalia planetária

Assim como a onda de calor na América do Sul foge muito ao normal, este aquecimento em escala planetária súbito neste mês também. Os cientistas, obviamente, se debruçam sobre os dados de muitas variáveis atmosféricas para entender uma ou mais causas. Ryan Stauffer, da NASA, acredita que este brusco aquecimento do planeta agora nesta primeira quinzena de março, e que tende a ceder, pode ter uma enorme influência de variável conhecida como Oscilação de Madden-Julian.

BoM AUSTRALIA

Os dados mostram que a OMJ saiu da escala neste mês em sua fase 8 sobre o Hemisfério Ocidental, o que está gerando um rápido aquecimento das águas do Pacífico Equatorial perto da América do Sul e pode estar “disparando o gatilho” para a formação de um evento de El Niño neste outono. A amplitude da OMJ pode ser a maior neste momento desde o começo dos registros em 1974.

A Oscilação de Madden-Julian é uma área de maior instabilidade que circunda o mundo, movendo-se de Oeste para Leste, a cada 30 a 60 dias pelos trópicos, mas que estudos mostram ter influência nas zonas subtropicais e com repercussões até nas regiões polares.

Descoberta em 1971 pelos cientistas Roland Madden e Paul Julian do Centro Nacional de Pesquisas Atmosféricas (NCAR), dos Estados Unidos, a oscilação também chamada de 30-60 é hoje monitorada atentamente pelos meteorologistas no mundo inteiro. A oscilação vem acompanhada de uma condição de maior convecção (movimentos ascendentes na atmosfera) que favorece instabilidade atmosférica e, assim, chuva.

Seus efeitos são especialmente pronunciados sobre os oceanos Índico e Pacífico. De acordo com a sua intensidade, os efeitos podem ser mais ou menos pronunciados por onde passa. Por isso, a atuação desta oscilação já foi responsável por trazer chuva com altos volumes no verão do Sul do Brasil, mesmo estando um evento de La Niña atuando no Pacífico.

A OMJ favorece ainda atividade ciclogenética, ou seja, a formação de ciclones. Como consequência, quando a oscilação passa pelas longitudes do continente americano cresce o risco de ciclones extratropicais no Atlântico Sul, sendo que alguns podem ser intensos com reflexos no Sul do país.

No Atlântico Norte, fases negativas da OMJ na temporada de furacões reduzem o risco de ciclones tropicais e fases positivas aumentam demais a probabilidade de tempestades tropicais e furacões. Já no inverno, a fase positiva tende a gerar ciclones extratropicais intensos no Atlântico Norte como os Nor’easter que afetam a costa Nordeste dos Estados Unidos.