Bombeiros trabalham para extinguir um incêndio que eclodiu em Paraje Villegas, província de Rio Negro, ao Sul de Bariloche, na Argentina, no final do ano. Onda de calor da virada do ano agravou os incêndios florestais nas províncias argentinas de Neuquén, Rio Negro e Chubut, onde as chamas consumiram milhares de hectares de mata nativa. FRANCISCO RAMOS MEJIA/AFP/METSUL METEOROLOGIA

A potente onda de calor que assolará Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul nesta semana será um exemplo clássico de extremo climático composto. Se os extremos no planeta têm se tornado cada vez mais frequentes, os compostos acabam se tornando mais comuns. São várias situações extremas que se dão de forma simultaneamente, agravando umas às outras.

Os extremos compostos, referidos como extremos simultâneos, concorrentes ou coincidentes, podem levar a impactos maiores para a sociedade humana e o meio ambiente do que os extremos individuais isoladamente. Há ampla gama de eventos compostos que ocorrem em uma variedade de escalas espaciais e temporais.

Alguns exemplos típicos de extremos combinados incluem seca associada a ondas de calor, inundações costeiras associadas a vento intenso, aumento do nível do mar por ciclones tropicais seguidos de ondas de calor, inundações que se seguem a ciclones extratropicais, etc.

No caso desta semana, o Centro da América do Sul terá uma poderosa onda de calor (extremo) em meio ao um quadro de estiagem forte a severa (outro extremo) que pode levar a incêndios (extremo consequente). A estiagem favorece onda de calor mais intensa e por sua vez o calor piora a estiagem. Não à toa, os recordes de calor do Rio Grande do Sul de 42,6ºC em 1917 e em 1943 se deram quando o estado gaúcho passava por fortes secas naqueles anos.

Atualmente, a ciência ainda trabalha para melhor compreender todos os tipos de extremos compostos, os processos dinâmicos e físicos associados a eles, a estrutura e os métodos para analisar os extremos e o risco nos climas presentes e futuros. O termo primeiro apareceu em relatório do Painel Intergovernamental da Mudanças Climáticas da ONU em 2012 e recebeu muita atenção no relatório publicado em 2021.

Como a estiagem e o calor se retroalimentam

A onda de calor muito intensa a extrema que atinge nesta semana e na metade do mês o Centro da América do Sul ocorrerá com a região passando por uma situação de estiagem forte com grande impacto na agricultura, rios secando e problemas no abastecimento de água para consumos humano e animal na Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul.

Ondas de calor intensas ocorrem nos meses quentes do ano com ou sem estiagem, em verões secos ou chuvosos, mas, historicamente, se observa que os episódios de calor mais extremo se dão durante estiagens ou secas. Isso por um processo de interação terra-atmosfera em que a estiagem deixa a atmosfera ainda mais seca e, com o ar mais seco, a temperatura se eleva mais em mecanismo de feedback positivo. A literatura técnica explica tal processo:

A compreensão atual da física por trás das secas meteorológicas e ondas de calor sugere que anomalias de circulação em grande escala persistentes semelhantes são críticas para o início de ambos os eventos, o que explica em parte por que os extremos frequentemente coincidem. Feedbacks terrestres-atmosféricos semelhantes têm sido sugeridos como centrais em sua evolução, mesmo se as secas e ondas de calor frequentemente abrangem escalas temporais diferentes, sendo as últimas tipicamente mais curtas (dias a semanas) do que as primeiras (meses a anos). Esses feedbacks são intuitivos: conforme o solo e a vegetação secam, a evaporação da terra (ou evapotranspiração) é reduzida, portanto, o ar se torna ainda mais seco, o que pode diminuir ainda mais a probabilidade de chuva e favorecer a ocorrência de secas meteorológicas.

Concomitantemente, conforme a evaporação declina progressivamente, uma fração maior da radiação incidente é empregada para aquecer o ambiente, o que leva a um acúmulo de calor sensível na atmosfera que pode evoluir para uma onda de calor ou exagerar sua magnitude”. (Miralles D G, Gentine P, Seneviratne S I and Teuling A J 2019 Land–atmospheric feedbacks during droughts and heatwaves: state of the science and current challenges Ann. N. Y. Acad. Sci. 1436 19–35)

Foi exatamente o que ocorreu em excepcionais ondas de calor no mundo em 2021. A onda de calor que assolou o Noroeste dos Estados Unidos e British Columbia (Canadá), com centenas de mortes em junho do ano passado, se deu em meio a ciclo de seca excepcional e incêndios que afetava o Oeste da América do Norte. O calor exacerbou a seca e agravou os incêndios.

Na Europa, o continente registrou a mais alta temperatura da sua história com 48,8ºC em Siracusa, na Sicília, no Sul da Itália, no mês de agosto. O recorde se deu durante uma poderosa onda de calor que foi batizada localmente de Lúcifer e em meio a um quadro de seca e grande número de incêndios na costa do Mediterrâneo.

Verkhoyansk, uma cidade na Sibéria, registrou uma temperatura de 38ºC em 20 de junho de 2020. A Organização Meteorológica Mundial (OMM) confirmou que a cidade siberiana, 115 quilômetros ao norte do Círculo Polar Ártico, experimentou a temperatura mais alta já registrada na região do Ártico. O recorde se deu durante uma extraordinária onde de calor com seca severa na região que impulsionava incêndios.

Todos estes eventos extremos de calor acabaram por agravar, ao menos temporariamente, ainda mais as secas regionais nos locais atingidos com piora do cenário hídrico e um aumento dramático no número de incêndios. Eram vários extremos climáticos agindo simultaneamente e uma agravando o outro.

A onda de calor no Centro da América do Sul desta semana

Uma brutal onda de calor de temperatura extremamente elevada e por período prolongado atingirá o Centro da América do Sul nesta semana e na metade do mês. São esperadas marcas extremas em grande parte da Argentina, Uruguai, e Rio Grande do Sul. Recordes de máximas de décadas devem cair nos territórios uruguaio e argentino que devem sofrer o pior, mas marcas históricas também podem ser alcançadas no Rio Grande do Sul.

Será um evento de calor incomum com temperatura muitíssimo acima da climatologia normal de janeiro com máximas até 10ºC a 15ºC acima das médias históricas. O que modelos discrepam ainda é sobre a quanto pode chegar a temperatura. A tendência, pela análise da MetSul, é de marcas de até 45ºC a 47ºC nos locais mais quentes da Argentina e de 41ºC a 43ºC no Uruguai. Ontem, domingo, já fez 42ºC na Argentina mesmo antes do período de calor mais crítico esperado.

Aqui, no Rio Grande do Sul, o pior do calor em momento inicial vai se dar no Oeste com escalada de temperatura nos próximos dias e máximas de 41ºC a 42ºC na área de Uruguaiana na segunda metade da semana. Alguns dados projetam para a região até 43ºC ou mais, o que confirmando-se significaria um novo recorde absoluto de calor no Rio Grande do Sul, hoje de 42,6ºC em Alegrete (1917) e Jaguarão (1943).

Em Porto Alegre e região, o calor será maior no final da semana e no próximo fim de semana com marcas ao redor ou acima dos 40ºC. A maioria dos dados ontem não indicava calor tão extremo para a Grande Porto Alegre como em fevereiro de 2014, quando a Capital ficou a 0,1ºC do seu recorde de 40,7ºC de 1943, mas a intensidade do calor na Grande Porto Alegre ainda traz divergência entre os dados com alguns apontando marcas extremas.

O calor vai agravar ainda mais as perdas no campo com a seca, trará falta de água em alguns municípios pela alta demanda, levará o risco de incêndio em vegetação ao extremo e na Argentina poderá provocar uma crise de abastecimento de luz com cortes de energia na capital Buenos Aires e outras cidades do país pela alta demanda.