Em julho de 1975, em ano de inverno muito rigoroso, dois desastres se abateram pelo clima no Brasil simultaneamente com imenso custo de vidas e prejuízos econômicos. Ao mesmo tempo que a cidade do Recife enfrentava a maior enchente da sua história, uma brutal onda de frio com geada severa generalizada dizimava a produção de café brasileira no pior evento polar enfrentado pelo setor na história recente.

Enchente de 1975 é considerada a maior catástrofe natural da história de Recife e deixou dois terços da cidade inundados | ARQUIVO HISTÓRICO

A tragédia da chuva de agora em Recife traz à memória o desastre de quatro décadas atrás. A capital pernambucana enfrentou duas grandes enchentes no último meio século, a primeira em 1966 e a segunda, e maior, em julho de 1975. Entre os dias 17 e 18 de julho de 1975, córregos e o Rio Capibaribe se elevaram rapidamente e transbordaram, inundando bairros inteiros. Cerca de 80% da cidade do Recife ficou debaixo d´água.

Os jornais de Pernambuco descrevem que “ruas ficaram intransitáveis, dezenas de árvores caíram, muitos carros viraram, todos os serviços literalmente pararam, as lojas, muitas inundadas, fecharam. Mais da metade da cidade ficou sem energia elétrica, os hospitais funcionavam à luz de velas. O transporte nos bairros era improvisado em botes e barcos, um verdadeiro terror”.

O então governador José Francisco Moura Cavalcanti deu entrevista no Palácio do Campo das Princesas em que alertou para a enchente e apelou às pessoas que voltassem para suas casas. Outras 25 cidades banhadas pelo Rio Capibaribe foram atingidas, algumas duramente como Camaragibe e São Lourenço da Mata. Morreram 107 pessoas e 350 mil ficaram desabrigados, muitos perdendo tudo nas suas casas destruídas, relata o jornalista João Alberto Martins Sobral.

“Recife ficou de joelhos perante a força da natureza”, descreveu o Jornal do Comércio. Foram 31 bairros e 370 ruas atingidas pelo transbordamento do Rio Capibaribe. Os bairros que ficam na bacia do curso-d’água – Caxangá, Iputinga, Cordeiro, Casa Forte, Afogados, Madalena entre outros – foram os mais atingidos. Ruas inteiras ficaram embaixo d’água, houve desabamentos, milhares de flagelados, e o pior: vidas, de todas as classes sociais, foram interrompidas.

“De fato, foi a maior enchente que Recife enfrentou. Dois terços da cidade ficaram inundados. Tivemos que começar tudo de novo”, diz o historiador Leonardo Dantas, que analisou as cheias do Rio Capibaribe desde o século 19. Segundo ele, a construção de barragens ao longo do curso de água evitou novas cheias como esta. As obras ainda teriam permitido o crescimento de áreas que ficavam inundadas com frequência até a década de 1970.

Recife inundava, meio Brasil congelava

Na mesma hora em que a cheia do Rio Capibaribe inundava Recife na maior catástrofe natural da capital pernambucana, um desastre econômico se abatia em estados do Centro e do Sul do Brasil com uma enorme e muito intensa massa de ar polar que trouxe geada severa em diversos estados, dizimando a produção brasileira de café como jamais se vira no Brasil moderno.

O Paraná foi o estado mais castigado pela geada, embora a geada tenha trazido prejuízos também no Sudeste com danos para o café em Minas Gerais. No dia 18 de julho de 1975, uma forte geada ocorreu na região do Norte do Paraná atingindo as plantações de café, ficando conhecida como “geada negra” de 1975. O fenômeno natural que dizimou as plantações é mencionado pela historiografia e mantido na memória coletiva da cidade como responsável pelo fim da cultura cafeeira na região.

“Não sobrou um único pé de café no Paraná. A lavoura de trigo foi dizimada, as demais culturas não existem mais. Esse é o relatório preliminar, mas real, dos estragos causados pela geada que atingiram todo o território paranaense. E este é o tom do relatório feito ontem à noite pelo governador Jaime Canet ao presidente Ernesto Geisel. Ele coincide com a observação de todos os homens ligados à cafeicultura”, informava o jornal Folha de Londrina na sua edição de 19/07/1975.

A cidade de Londrina era considerada a “capítal mundial do café” em 1975 até que veio a geada negra que devastou os cafezais e arrasou a economia do Paraná com dois milhões de pessoas deixando suas terras e casas após as perdas pelo frio | FOLHA DE LONDRINA/REPRODUÇÃO

O impacto econômico e social foi devastador. No ano anterior à geada, o Paraná representava 80% da produção nacional de café. Além de desemprego e dificuldades financeiras, o desastre da geada que aniquilou a produção de café levou muitos produtores a abandonar suas terras e casas. O resultado foi êxodo rural que, conforme alguns estudos, atingiu cerca de dois milhões de pessoas.

Os trabalhadores rurais, desempregados, deixaram o Paraná em busca de emprego em outros estados. Algumas cidades perderam grande parte de sua população. Muitos decidiram vender suas terras e partiram para o Mato Grosso, São Paulo e Rondônia. Os que ficaram no Paraná se mudaram para grandes centros urbanos como Londrina e Maringá.

O que aconteceu naquela semana de 1975?

A terceira semana de julho de 1975 teve uma das mais intensas incursões de ar polar que o Brasil enfrentou nas últimas décadas. De trajetória continental, avançando pelo interior da América do Sul, que rendeu na literatura a expressão “Poço dos Andes”, o ar gelado atingiu diversas áreas do território brasileiro. Brasília (DF) teve a mínima absoluta da sua história com 1,4ºC.

Esquematização do evento “Poço dos Andes” baseada na sequência do satélite geoestacionário SMS-2 entre 13 e 18 de julho de 1975 e imagens do satélite NOAA-4 de 17 e julho de 1975 | MASTER/IAG/USP/NOAA

A incursão de ar gelado provocou geada em muitos estados, inclusive no Sul da Amazônia e no Brasil Central, e trouxe grande episódio de neve no Sul do Brasil a ponto de ter nevado na cidade de Curitiba. Foi um evento de frio tão extraordinário que a neve acumulou com grossa camada no alto do Morro Ferrabrás, em Sapiranga, na Grande Porto Alegre. Nevou no Sul, na Campanha, nos vales, no Noroeste gaúcho e no Centro gaúcho, em algumas cidades quase ao nível do mar. A neve caiu ainda em diversas regiões de Santa Catarina e do Paraná, inclusive no Oeste e com acumulação.

Já no Nordeste do Brasil, enquanto a intensa frente fria avançava pelo Brasil no dia 17 se via uma vigorosa onda de Leste atuando na região. As chamadas ondas de Leste nada mais são que áreas de perturbação atmosférica que avançam pela região tropical do continente africano em direção às Américas, muitas vezes dando origem às tempestades tropicais e furacões no Atlântico Norte. No Nordeste do Brasil, as ondas tropicais são responsáveis por gerar chuva em volumes excessivos.

La Niña em 1975

O mesmo cenário climático global que favoreceu o frio excepcional em grande parte do Brasil também contribuiu para a maior enchente da história de Recife. No inverno de 1975, assim como agora em 2022, o fenômeno La Niña atuava no Oceano Pacífico. O chamado ONI (Oceanic Niño Index) era de -1,1ºC no trimestre de junho a agosto de 1975. Desde então, valor tão baixo do ONI no inverno somente foi observado em 1988 (-1,3ºC) e 1999 (-1,1ºC).

O fenômeno La Niña é conhecido por favorecer intensas e poderosas ondas de frio no Brasil durante o inverno. Muitas das principais ondas de frio históricas que assolaram o país se deram durante a atuação do fenômeno caracterizado pelo resfriamento das águas do Oceano Pacífico Equatorial. O mesmo fenômeno, que aumenta o risco de estiagem no verão no Sul, incrementa a chuva no Nordeste do Brasil com excessos.