Começam a aparecer os efeitos na cobertura de gelo da “onda de calor” que atingiu o Leste da Antártida dias atrás com temperatura até 40ºC acima da média e recordes de máximas, o que espantou os especialistas e alarmou a comunidade científica pelo inusitado de marcas tão bizarramente fora do comum e que foram resultado de um rio atmosférico com ar quente e umidade que foi da Austrália até o setor oriental do continente antártico.

Uma plataforma de gelo com área mais de duas vezes maior que a da cidade de Porto Alegre desmoronou completamente no Leste da Antártida Oriental, de acordo com dados de satélite. A plataforma de gelo Conger, que tinha uma superfície aproximada de 1.200 quilômetros quadrados, desabou por volta de 15 de março, informaram cientistas nesta sexta-feira.

Plataformas de gelo são extensões de mantos de gelo que flutuam sobre o oceano, desempenhando um papel importante na contenção do gelo no interior. Sem eles, o gelo do interior flui mais rapidamente para o oceano, resultando no aumento do nível do mar, explicam os especialistas em criosfera.

Os cientistas já antecipavam que a temperatura absurdamente fora do normal na região acabaria por trazer consequência na cobertura de gelo, especialmente em áreas próximas do oceano em locais de menor altitude. Os dados de satélite agora confirmam o impacto.

Catherine Colello Walker, cientista terrestre e planetária da NASA e da Woods Hole Oceanographic Institution, disse ao jornal The Guardian que, embora a plataforma de gelo Conger fosse relativamente pequena, “é um dos eventos de colapso mais significativos em qualquer lugar da Antártida desde o início dos anos 2000, quando a plataforma de gelo Larsen B se desintegrou”. “Provavelmente não terá grandes efeitos, mas é um sinal do que pode estar por vir”, disse Walker.

A plataforma de gelo de Conger vinha encolhendo desde meados dos anos 2000, mas apenas gradualmente até o início de 2020, disse Walker. Em 4 de março deste ano, a plataforma de gelo parecia ter perdido mais da metade de sua área de superfície em comparação com as medições de janeiro de cerca de 1.200 quilômetros quadrados. Dados do satélite Sentinel-1 do Sistema Copernicus mostraram que o movimento da plataforma de gelo começou entre 5 e 7 de março.

Conforme Helen Amanda Fricker, professora de glaciologia no Scripps Polar Center, três eventos de desprendimento – quando pedaços de gelo se desprendem da borda de uma geleira – ocorreram no Leste da Antártida neste mês de março. Além do colapso da plataforma de gelo Conger, houve eventos de parto menores da geleira Totten e da plataforma de gelo Glenzer.

Temperatura 40ºC acima do normal

A Antártida registrou temperatura 40ºC acima do normal no final da semana passada com recordes de máximas no dia 18 de março que chegaram a estraçalhar os recordes prévios em até 15ºC, o que jamais tinha sido observado em qualquer lugar do planeta antes. “Este evento reescreve livros de recordes e nossas expectativas sobre o que é possível na Antártida. Isso é simplesmente um evento estranhamente improvável, ou é um sinal de mais por vir? Neste momento, ninguém sabe”, escreveu Robert Rohde, da Universidade de Berkeley, em seu Twitter.

A onda de temperatura elevada – para os padrões locais – com desvios absurdamente altos da climatologia histórica atingiu por dias seguidos o planalto do Leste da Antártida, no setor do continente gelado voltado para a Austrália. A temperatura na região ficou 30ºC a 40ºC acima do que é normal. Para se ter ideia do nível absurdo do desvio da climatologia que se observou no Leste da Antártida, se ocorresse uma temperatura 40ºC acima da média em janeiro em Porto Alegre a máxima na capital gaúcha à sombra seria de 70ºC, uma vez que a média máxima histórica da cidade é de 30ºC. O recorde de 112 anos de dados de Porto Alegre é 40,7ºC em 1943.

“Este evento é completamente sem precedentes e superou nossas expectativas sobre o sistema climático da Antártida”, disse Jonathan Wille, pesquisador que estuda Meteorologia polar na Université Grenoble Alpes, na França, em um e-mail ao Washington Post. “A climatologia antártica foi reescrita”, escreveu Stefano Di Battista, pesquisador que publicou estudos sobre as temperaturas antárticas. Ele acrescentou que tais anomalias de temperatura teriam sido consideradas “impossíveis” e “impensáveis” antes de realmente ocorrerem.

Os pesquisadores da Antártida da Universidade de Wisconsin Linda Keller e Matt Lazzara ressaltaram que uma temperatura tão alta é particularmente digna de nota, já que março marca o início do outono na Antártida, em vez de janeiro, quando há mais luz solar. Nesta época do ano, a Antártida está perdendo cerca de 25 minutos de luz solar por dia.

Recordes dizimados

O aquecimento excepcional derrubou uma série de recordes históricos. A base Vostok, que detém o recorde de temperatura mais baixa já registrada no planeta, com -89,2ºC em 21/7/1983, e possui dados por 65 anos, teve na sexta uma temperatura máxima de -17,7ºC. Quase 18ºC abaixo de zero é muito frio, mas o recorde de máxima na estação a 3.500 metros de altitude na Antártida bate o recorde anterior em impressionantes 15ºC. A temperatura média máxima em Vostok – no centro da camada de gelo oriental e a 1.200 quilômetros do Polo Sul – é de cerca de -53ºC em março.

Outras estações na Antártida também tiveram recorde de máxima absoluta. A francesa e italiana Concordia (a 3234 metros de altitude) anotou -12,2ºC, marca quase 40ºC acima do normal. A estação Dome C II, a 3250 metros, teve recorde de máxima com -10,1ºC. O mesmo ocorreu em D-47 (1560 metros) com -3,3ºC e na base Terra Nova com 7ºC positivos.

O aquecimento extraordinário que se observa no momento no Leste da Antártida se deve a um padrão de escoamento da atmosfera gerado por uma poderosa crista (centro de alta pressão atmosférico) que levou um rio atmosférico com umidade e ar mais quente da Austrália para o continente gelado.