Os Estados Unidos enfrentaram na última semana uma brutal onda de frio. Muito se disse sobre a onda gelada e suas consequência, mas no noticiário geral não se viu profundidade sobre as suas causas, o padrão de circulação atmosférica que a desencadeou e como este episódio se insere na climatologia local e no contexto geral das mudanças climáticas. De início, foi uma expressiva onda de frio que de forma alguma pode ser reduzida. Grandes áreas dos Estados Unidos experimentaram suas menores mínimas em quase duas décadas. Não fazia tamanho frio desde a metade da década de 90 em diversos estados.


A temperatura caiu a 26ºC abaixo de zero na terça (7) na cidade de Detroit, em Michigan. A sensação térmica baixou a 41ºC negativos. Foi o 16º dia mais frio já registrado em toda a história a cidade. Em Saint Louis, no Missouri, a mínima na segunda-feira (6) de 22ºC abaixo de zero foi a mais baixa na cidade desde os 24ºC negativos de 3 de fevereiro de 1996 e a primeira “subzero” (negativa em Fahrenheit ou inferior a -17,7ºC) desde o dia 5 de janeiro de 1999. A máxima de apenas 16,6ºC abaixo de zero foi a menor desde 2 de janeiro de 1994. Em Indianápolis, Indiana, a mínima de 26,1ºC negativos na segunda-feira (6) foi a menor desde o recorde de mínima absoluta de 32,7ºC abaixo de zero no dia 19 de janeiro de 1994.


Em Milwaukee, Wisconsin, a mínima de 25ºC abaixo de zero no dia 7 foi a menor desde os 26,1ºC negativos de 5 de janeiro de 1999. Na Capital Washington, a mínima de 14,4ºC abaixo de zero na terça foi a menor na cidade desde 5 de fevereiro de 1995. Já na cidade de Nova York, a mínima no Central Park de 15ºC negativos foi recorde diário para 7 de janeiro desde o início das medições em 1869, batendo o recorde anterior para a data de 14,4ºC abaixo de zero em 1896.


O frio em Chicago foi extraordinário. A mínima foi de 23,9ºC abaixo de zero no dia 7 na estação oficial do Aeroporto de O’Hare, recorde diário. A máxima no dia foi de 18,3ºC negativos. O frio foi tão extremo na cidade do estado de Illinois que até o escritório local do Serviço Nacional de Meteorologia dos Estados Unidos passou a usar em suas redes sociais a expressão “Chiberia”, em alusão à Chicago e Sibéria, o que por óbvio acabou ficando popular a ponto de ganhar as capas dos jornais.


A temperatura ao meio-dia no dia 7 em Chicago era de 25,5ºC negativos, sétima menor já anotada no horário desde o começo das observações meteorológicas em 1871. O recorde ao meio-dia é de 29,4ºC negativos em 10 de janeiro de 1982. O Rio Chicago, que cruza o Loop (Downtown) congelou e grandes blocos de gelo podiam ser vistos às margens do Lago Michigan.


A onda gelada nos Estados Unidos da semana passada fez com que os Grandes Lagos atingissem sua maior cobertura de gelo em duas décadas, de acordo com dados de órgão de monitoramento do Canadá. A cobertura nos Lagos Superior, Michigan, Huron, Erie e Ontário aumentou de 12% para 26% em apenas uma semana, atingindo níveis não observados nesta época do ano desde a grande onda de frio de janeiro de 1994. O Lago Erie atingiu impressionantes 90% de sua extensão congelada.


Interessante é verificar o porquê de ter feito tanto frio. Fenômeno conhecido há décadas pela Meteorologia, o chamado vórtice polar se tornou popular na última semana pela sua freqüente citação durante o noticiário da onda de frio nos Estados Unidos. Os americanos foram inundados na mídia pelo “polar vortex” e do dia para a noite termo desconhecido do público se tornou popular. Mas, afinal, o que é esse fenômeno que tanta atenção mereceu durante a cobertura da intrensa onda de frio ?


É um sistema de baixa pressão (logo ciclônico) persistente e de grande escala em altos níveis da atmosfera que atua nos dois polos do planeta. Enfraquece no verão e fica mais forte no inverno. Não é algo novo que tenha surgido recentemente, não está na superfície, não é visível como as nuvens e não traz perigo para as pessoas, exceto pelo frio extremo ao qual está associado. Às vezes se desprende da região polar (posição mais normal na América do Norte é na Baía de Hudson) e avança para latitudes menores. Foi exatamente o que se deu na semana passada, quando atuou sobre a região dos Grandes Lagos, no Norte dos Estados Unidos e na porção Sul do Canadá.  


Se o termo vórtice polar é novidade para a esmagadora maioria das pessoas, mesmo nos Estados Unidos, onde a população possui cultura meteorológica acima da média, não é para o leitor da MetSul. O termo já freqüentou recentemente nossas análises aqui para o Sul do Brasil (abaixo). Na forte onda de frio que trouxe neve em julho passado para nós, também um vórtice polar foi decisivo para o gelo. Ele deixou a área ao redor do Centro da Antártida, onde costuma atuar, e se aproximou da província meridional argentina da Terra do Fogo, o que proporcionou a forte incursão de ar bastante gelado no Cone Sul.  


Por óbvio, este episódio de frio extremo acabou por desencadear uma polêmica enorme na comunidade climática americana. Os aquecimentistas dizendo que é uma prova cabal do aquecimento global e os céticos dizendo que é prova que o aquecimento é uma farsa. Nem tanto ao céu, nem tanto à terra. A ciência ainda não tem exata compreensão que está por trás de comportamentos anômalos de correntes de jato no Hemisfério Norte que levam bolsões de ar extremamente gelado em latitudes médias. A questão da chamada “amplificação ártica”é por demais intricada. O aquecimento do Ártico, conforme alguns, levaria a eventos mais extremos de frio, mas são os mesmos que dizem que o número de dias de frio extremo diminuiu por conta do aquecimento do planeta. Fato é que eventos de frio extremo parecem estar claramente relacionados a súbitos eventos de aquecimento estratosférico polar e ao comportamento de oscilações como NAO e AO, no Ártico e no Atlântico Norte, com favorecimento de eventos de frio extremo em suas fases negativas. Veja no mapa abaixo de circulação de vento em altitude na América do Norte da última segunda-feira (6) como o padrão de circulação dá uma grande cavada de Norte para Sul justamente sobre o Meio-Oeste e a Metade Leste dos Estados Unidos, indicando a presença do vórtice polar.


A questão é tão complexa e intrincada que o comportamento meramente das oscilações intrasazonais não responde bem ao que ocorreu recentemente na América do Norte. Quando da sua fase negativa, elas favorecem incursões de ar muito gelado nos Estados Unidos, mas também na Europa Ocidental. Só que enquanto os norte-americanos congelavam, a temperatura se manteve acima da média na maior parte do continente europeu.


O que chama a atenção neste começo de ano no Atlântico Norte é o padrão de circulação de vento em altitude. A corrente de jato está muito ativa e seu posicionamento tem feito que o Oeste da Europa esteja experimentando um inverno por demais tempestuoso. Por conta do jato, o mesmo centro de baixa pressão que atuou no Nordeste dos Estados Unidos entre os dias 2 e 3 de janeiro com nevascas no território americano, cruzou nos dias seguintes o Atlântico, seguindo a corrente de jato, intensificando-se muito e provocando um violento temporal de chuva e vento na Inglaterra e outros países europeus (foto abaixo). É o inverno mais tempestuoso, por exemplo, na Grã Bretanha das últimas duas décadas, de acordo com o Met Office.


Pergunta reiterada nos últimos dias é se o evento de frio extremo nos Estados Unidos é um sinal de que nosso próximo inverno no Rio Grande do Sul será rigoroso. Já se ouviu até opiniões na mídia a respeito, quando é cedo pra opinar. Primeiro, foi episódio apenas de frio extremo e um evento não conta a história de uma estação toda. Tempo não é clima, é parte dele. Tanto que aqueceu rapidamente depois dos dias gelados nos Estados Unidos. Segundo, as condições oceânicas globais de hoje podem ser muito diferentes no próximo inverno. Terceiro, padrões se repetem (teleconexão), mas não existe replay. Aliás, a esmagadora maioria dos modelos de clima (abaixo) sinaliza hoje um inverno mais quente que a média no Rio Grande do Sul.


O que chama atenção neste começo de ano e pode ter repercussões em nosso inverno é sim a cobertura de gelo marítimo na Antártida. Esta se encontra em níveis máximos históricos desde o início das medições por satélite em 1979. Temos observado ao longo dos anos uma maior propensão para episódios de frio intenso em anos em que a cobertura de gelo no Polo Sul é muito alta. Por fim, impossível deixar de atestar uma coincidência. Em muitos locais dos Estados Unidos, este foi o mais significativo evento de frio desde 1994 e o nosso último inverno no Rio Grande do Sul foi justamente o com mais neve desde 1994. Alguma relação ? Tema interessante para uma próxima e instigante pesquisa. (Produção de Alexandre Aguiar com reproduções do NWS/NOAA, Earth, Universidade do Maine, MESONET, Carve Magazine/SurfPhotos e jornais americanos).