Anúncios

A Argentina contabiliza oito ondas de calor consecutivas desde a primavera, sendo que na última década não foram mais de quatro ou cinco por temporada. A última, na semana passada, foi responsável por derrubar dezenas de recordes históricos de temperatura máxima no país. O Uruguai e o Rio Grande do Sul igualmente sofreram com sucessivas ondas de calor desde o fim de novembro.

Mas não só na atmosfera ocorrem ondas de calor. Você provavelmente nunca leu a respeito, mas também nos oceanos podem se registrar e são chamadas de ondas de calor marinha. Desde o mês de janeiro, a MetSul Meteorologia vem monitorando uma onda de calor marinha que se instalou no Atlântico Sul com águas superficiais mais quentes ou muito mais quentes do que a média numa enorme área da Argentina ao Sudeste do Brasil.

Foi justamente esta onda de calor marinha a responsável por muitos dias de mar quente e com águas claras no litoral do Rio Grande do Sul, o que contribuiu também para um elevado número de ocorrências envolvendo banhistas e água-viva (medusas).

Nas últimas semanas, as temperaturas superficiais do Atlântico Sul estiveram sistematicamente mais quentes do que a média. Os desvios em algumas áreas oceânicas, mais distantes da plataforma continental, chegaram a alcançar anomalias positivas tão altas quanto 4ºC ou 5ºC.

No começo deste mês, em nenhum lugar do planeta as águas do mar estavam com temperatura tão acima dos padrões históricos numa extensa região como o Atlântico Sul, especialmente em locais entre as latitudes de 30ºS (a do Rio Grande do Sul) e de 60ºS (entre a Antártida e o extremo Sul da América).

Este aquecimento anômalo das águas do Atlântico Sul acompanha um quadro de seca severa no Cone Sul da América que atinge Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul por conta do fenômeno La Niña de resfriamento das águas superficiais do Pacífico Equatorial.

O panorama observado de frentes frias escassas e fracas quando avançavam para Norte pelo Cone Sul, sem grandes ciclones extratropicais no Atlântico Sul, não foi apenas causador das ondas de calor na atmosfera, mas também contribuiu para a instalação de uma onda de calor marinha, afinal oceano e atmosfera possuem mecanismos de feedback em que um influencia o outro.

Temperatura do mar impacta chuva

Estudos mostram que a ocorrência de chuvas extremas e a magnitude destas precipitações que podem levar a desastres naturais são sensíveis a grandes anomalias de temperatura da superfície do mar em áreas adjacentes a áreas altamente populosas perto da costa. Neste caso, quando há uma anomalia negativa local, a área de forte precipitação tende a se deslocar para longe da terra, reduzindo a precipitação sobre as áreas povoadas. O contrário ocorre quando as águas estão mais quentes junto ao litoral.

Dois exemplos notórios de lugares em que a temperatura do mar na costa traz extremos de chuva. Aqui na América do Sul, o Peru talvez seja o país mais exposto pelo aquecimento e o resfriamento das águas do Pacífico Equatorial (El Niño e La Niña) porque os fenômenos se dão exatamente no seu litoral. Com Niño, os peruanos enfrentam excesso de chuva e extremos ao passo que com Niña amargam secas, como foi nos últimos meses.

Outro país que sofre muito com a anomalia de temperatura do mar é a Austrália. Quando as águas aquecem na costa Oeste da América do Sul tendem a esfriar na costa da Austrália, o que traz secas e incêndios florestais. Quando tem La Niña no Pacífico Centro-Leste, águas mais quentes atuam perto da Austrália e o efeito é o oposto com muita chuva.

Com a La Niña no terceiro ano, a Austrália enfrentou em 2022 chuva em algumas áreas como não se via em pelo menos um século e meio, desde o começo das medições. Em um ano marcado por enchentes, pelo menos 10 locais registraram ao menos um dia com mais de 500 mm em 24 horas.

Doon Doon, em Nova Gales do Sul, teve 758 mm em 28 de fevereiro. Foi o dia mais chuvoso em qualquer lugar da Austrália desde o final dos anos 90. A estação meteorológica Bellenden Ker, na segunda montanha mais alta de Queensland, detém o recorde do dia mais chuvoso com 1.174,6 mm em 13 de fevereiro de 1999.

Sydney teve em 2022 o ano mais chuvoso de sua história. O total anual final da cidade para 2022 foi de 2.530 mm. O recorde anual anterior era de 2.194 mm em 1950. A média anual de longo prazo de precipitação é de 1.213 mm, ou seja, choveu no ano passado mais quente o dobro da média histórica. Sydney tem registros anuais de precipitação desde 1859.

Onda de calor marinha e a chuva em São Paulo

O litoral de São Paulo foi assolado por um episódio de chuva extraordinário entre a tarde e a noite do dia 18 e as primeiras horas do dia 19 de fevereiro. Os volumes observados foram os mais altos no Brasil desde que se iniciaram as medições meteorológicas há mais de um século.

Conforme os dados dos pluviômetros digitais do Centro Nacional de Previsão de Monitoramento de Desastres, Cemaden, em 24 horas, entre 9h do sábado (18) e 9h do domingo (19), a chuva somou 680 mm em Bertioga, 626 mm em São Sebastião, 388 mm no Guarujá, 337 mm em Ilhabela, 335 mm em Ubatuba, 234 mm em Caraguatatuba: 234 mm, 225 mm em Santos, 203 mm em Praia Grande e 186 mm em São Vicente.

A precipitação em alguns pontos entre Bertioga e São Sebastião somou até 400 mm ou mais em menos de seis horas. Entre 20h50 e 21h40, o ponto de medição na praia de Guaratuba, em Bertioga, registrou 143 mm. Das 21h50 a 22h40, o pluviômetro acusou mais 130 mm. Ou seja, em duas horas choveu 273 mm. Houve acumulados de até 25 mm, cerca de 10% da média de chuva do mês, em apenas dez minutos.

É muito provável que as condições oceânicas possam ter contribuído para a magnitude fora do normal do evento de chuva. Com ou sem oceano aquecido, a região igualmente seria castigada por chuva extrema que foi de natureza orográfica (associada ao relevo) com fluxo de umidade do mar para o continente por um centro de baixa pressão e uma frente fria.

O que a temperatura da superfície do mar mais alta do que o normal pode ter ocasionado foi agravar o evento, fazendo com que chovesse ainda mais. Na véspera do evento extremo, dados de satélites mostravam a temperatura da superfície do mar 1ºC a 2ºC acima da média na costa paulista com algumas áreas perto de 3ºC.

O mar mais quente impacta o fluxo de calor latente e implica em maior presença de umidade da atmosfera. Como o episódio de chuva extraordinária foi consequência da uma frente fria e de um centro de baixa pressão transportando umidade do Atlântico para o relevo da Serra do Mar, a maior disponibilidade de umidade no ar pelo oceano aquecido significava mais vapor de água na atmosfera para se converter em chuva ao interagir com as elevações da costa.

O que são ondas de calor marinhas

Há muito tempo se sabe das ondas de calor em terra, os períodos prolongados de muitos dias em que as temperaturas são excepcionalmente altas e acima do normal, mas, nos últimos anos, os cientistas voltaram as suas atenções para um outro tipo de onda de calor e que ocorre no oceano.

Frequentemente, nos últimos anos, no noticiário meteorológico, apareceu uma expressão em inglês chamada de “blob” (ou bolha). Entre 2014 e 2016, as águas do Pacífico na Costa Oeste dos Estados Unidos ficaram mais altas do que o normal em uma onda de calor marinha que ficou conhecida como “a Bolha”. O evento teve grandes impactos no ambiente marinho e economia da Costa Oeste norte-americana e se destacou como a maior onda de calor marinha desde que os satélites da NOAA começaram a acompanhar em 1981.

Nick Bond, climatologista do estado de Washington e cientista do Instituto Conjunto para o Estudo da Atmosfera e do Oceano da Universidade de Washington (um instituto cooperativo da NOAA) explicou que uma onda de calor marinha “é o equivalente do oceano a uma onda de calor no clima, que são temperaturas muito incomuns que fazem a diferença no ecossistema marinho”.

O que causa as ondas de calor marinhas? Quase sempre são os padrões climáticos incomuns que causam mais calor do que o normal no oceano, aquecendo a superfície ou, em alguns casos, suprimindo a quantidade de calor que sai do oceano.

Sabe-se que muito calor extra da atmosfera devido ao aumento das concentrações de gases de efeito estufa acaba absorvido pelos oceanos. Então, quando há padrões climáticos incomuns devido à variabilidade natural, como a La Niña, eles causaram flutuações nas temperaturas do oceano. Em 2022, o calor latente nos oceanos entre a superfície e 2000 metros de profundidade foi recorde no mundo.

Bond diz que o aumento da frequência de ondas de calor marinhas está sob pesquisa, mas que os resultados preliminares mostram um incremento no planeta. “Nossos modelos climáticos sugerem que a frequência destas ondas de calor marinhas, medidas em relação às temperaturas históricas, aumentará acentuadamente à medida que o clima continuar”, afirma.