O climatologista que há quase quarenta anos previu com quase exatidão como a temperatura do planeta subiria até os tempos atuais fez nos últimos dias um alerta à humanidade: vem aí um choque climático por um aquecimento mais acelerado da Terra e eventos mais extremos no clima.
Trinta anos atrás, James Hansen testemunhou no Congresso dos Estados Unidos sobre os perigos das mudanças climáticas causadas pelo homem. Foi o primeiro grande alerta ouvido pela classe política de Washinhgton sobre o que viria a ser uma das maiores agendas das décadas seguintes.
Em seu depoimento, Hansen mostrou os resultados de seu estudo de 1988 usando um modelo climático para projetar o aquecimento global futuro em três cenários possíveis, variando de poluição pesada ‘business as usual’ (ordinária) em seu Cenário A, sob ‘cortes de emissões draconianos’ no Cenário C, e um Cenário B moderado no meio.
Mudanças nos efeitos humanos que influenciam o desequilíbrio energético global da Terra (também conhecido como ‘forças radiativas antropogênicas’) foram, na realidade, mais próximas do Cenário B de Hansen, mas cerca de 20 a 30% mais fracas, graças ao sucesso do Protocolo de Montreal contra a redução do ozônio por meio da eliminação gradual dos clorofluorcarbonos (CFCs).
O modelo climático de Hansen projetou que no Cenário B, as temperaturas do ar da superfície global aqueceriam cerca de 0,84°C entre 1988 e 2017. Mas com um desequilíbrio energético global 20–30% menor, ele teria previsto um aquecimento global da superfície próximo a 0,6ºC-0,7°C C neste ano. O aumento real da temperatura entre 1988 e 2017 foi de cerca de 0,6°C. O modelo climático global de Hansen de 1988 foi quase perfeito.
Agora, uma equipe de cientistas liderada pelo ex-pesquisador do clima da NASA James Hansen, que formalmente alertou os líderes do governo dos EUA sobre a mudança climática em seu depoimento ao Congresso em 1988, está trabalhando em um novo estudo que adverte para um possível pico de aquecimento planetário em curto prazo: 2ºC acima dos níveis pré-industriais até 2050.
Numa ironia das mudanças climáticas, os cientistas dizem que o súbito aumento – especialmente desde 2010 – é impulsionado principalmente pela redução acentuada das partículas de aerossol de sulfato de resfriamento climático nos últimos 10 a 20 anos, à medida que novos regulamentos limitavam as emissões das maiores fontes, incluindo a queima de carvão e combustíveis para navios pesados.
O rascunho do documento não foi revisado por pares, mas Hansen, diretor do centro de Conscientização e Soluções em Ciências Climáticas do Earth Institute da Universidade de Columbia, publicou o trabalho em 19 de maio em um site de discussão científica, novamente chamando a atenção do público para o potencial de um choque de aquecimento de curto prazo com enorme impacto na produção global de alimentos e os ecossistemas.
O alerta anterior de Hansen sobre o potencial de aquecimento de curto prazo devido às reduções de emissões foi em 2021, quando ele disse que a queda na poluição por aerossóis de sulfato poderia dobrar a taxa de aquecimento global nos próximos 25 anos.
Em seu boletim climático mensal, ele explicou que os aerossóis de sulfato causam a multiplicação de gotículas de água microscópicas na atmosfera, o que ilumina as nuvens para refletir o calor para longe da Terra. A quantidade reduzida de sulfatos na atmosfera permite que mais calor do sol aqueça o oceano e as superfícies terrestres.
No rascunho de discussão do novo artigo, os autores preveem que a taxa de aquecimento dobrará dos 0,18ºC observados por década de 1970 a 2010, para pelo menos 0,27ºC por década desde 2010. “Sob a atual abordagem geopolítica das emissões de gases do efeito estufa, o aquecimento global provavelmente ultrapassará o teto de 1,5°C na década de 2020 e 2°C antes de 2050”, escreveram os autores. “Os impactos nas pessoas e na natureza vão se acelerar à medida que o aquecimento global aumenta os extremos hidrológicos.”
As concentrações de aerossóis de sulfato diminuíram mais acentuadamente nos oceanos nos últimos 20 anos por causa das regras de redução da poluição impostas ao transporte marítimo. E o novo alerta no artigo de Hansen ocorre em um momento em que a temperatura média da superfície do oceano disparou e permaneceu bem acima dos níveis recordes anteriores.
Esse fato não passou despercebido por Leon Simons, coautor do rascunho do documento, que recentemente passou a explicar o aquecimento do oceano com um gráfico mostrando como a área superaquecida do Atlântico se sobrepõe às principais rotas marítimas onde as emissões de aerossóis diminuíram.
A rápida queda de aerossóis está aumentando o desequilíbrio energético da Terra tão rapidamente que uma aceleração do aquecimento é inevitável, disse Simons, pesquisador do clima e membro do conselho do Clube de Roma, um think tank de sustentabilidade sem fins lucrativos com sede na Suíça.
Com efeito, as partículas de aerossol de sulfato protegeram a superfície do planeta de parte do calor do sol por décadas, e cortá-las está removendo o escudo, levando a um rápido aquecimento. Ou seja, o que foi feito para reduzir o aquecimento global e as mudanças climáticas acabou por aumentá-los. Outras pesquisas mostram que os aerossóis de sulfato também mascararam os aumentos globais de precipitação causados pelos gases de efeito estufa que aquecem a atmosfera.
Como Hansen, Simons disse que concordou em não discutir diretamente as descobertas do artigo. Mas ele disse que o rascunho publicado “inclui evidências observacionais para o aumento da taxa de aquecimento”, acrescentando que “parece bastante óbvio” que o efeito líquido de aquecimento dos gases de efeito estufa na atmosfera “pode resultar em 2ºC de aquecimento.
Mas não há consenso sobre a sensibilidade climática e nem todo mundo concorda com tais conclusões. O aquecimento de 2ºC até 2050 é improvável, afirmou o cientista climático Michael Mann, diretor do Centro de Ciência, Sustentabilidade e Mídia da Universidade da Pensilvânia, outro nome peso-pesado da comunidade científica climática.
Ele não acredita que as descobertas de Hansen no rascunho do documento resistirão à revisão por pares porque a pesquisa não considera adequadamente os efeitos de resfriamento do corte de outros poluentes de aquecimento climático de curta duração, que podem compensar o aquecimento resultante da redução do sulfato aerossóis na atmosfera.
A fuligem negra, que absorve o calor do sol, pode aquecer a atmosfera a curto prazo, e outros poluentes industriais extremamente potentes emitidos em pequenas quantidades têm um efeito de aquecimento climático descomunal.
Os cálculos desses diferentes efeitos estão incluídos nas avaliações climáticas globais mais recentes do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, que servem de base para as negociações sobre políticas climáticas globais, disse ele.
Os relatórios do IPCC mostram que os efeitos concorrentes quase se anulam, o que tornaria menos provável um aquecimento de 2ºC até 2050. Mas essas projeções do IPCC incluem grandes cortes nas emissões de metano como outra chave para compensar o aumento do aquecimento devido à redução dos sulfatos atmosféricos que não estão diminuindo. Ao contrário, aceleraram acentuadamente nos últimos cinco anos pelos dados da Administração Nacional de Oceanos e Atmosfera (NOAA), dos Estados Unidos.
Afirmar que a literatura científica atual apoia a ideia de que o aquecimento pode ser limitado a “bem abaixo” de 2ºC é “notório”, disse Hansen, e mostra “a aceitação acrítica dos modelos e das suposições que os fundamentam”.
Publicar um artigo antes de ser revisto é incomum, e por boas razões, incluindo preocupações sobre reivindicações injustificadas ganhando manchetes e atenção do público, enquanto correções ou mudanças subsequentes geralmente não recebem o mesmo nível de atenção.
Hansen disse que a equipe de pesquisa não responderá a perguntas diretamente sobre o estudo até que ele seja revisado por pares. “Se eu der uma entrevista antes de ela ser aceita (e publicada), parece dar aos autodenominados ‘especialistas’ uma desculpa para rejeitar nosso artigo”, disse ele.
Mas em uma atualização de 25 de maio em seu site da Universidade de Columbia, ele respondeu a algumas das reações iniciais ao rascunho do estudo escrevendo: “Não há tempo para se envolver em guerras no Twitter”.
Ele enfatizou que acha que o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas está minimizando alguns dos riscos mais iminentes do aquecimento global. “Até agora, pouca coisa mudou para nos tirar desse caminho”, escreveu ele. “Você não saberia disso pelas comunicações das COPs (Conferências das Partes) das Nações Unidas e seu órgão consultivo científico, o IPCC.” A abordagem de modelagem do IPCC é útil, disse ele, mas alertou que algumas de suas projeções parecem presumir que “um milagre ocorrerá”.
“Nossa pesquisa é focada em dados do mundo real e comparação com modelos, com a esperança de obter insights sobre como o sistema climático funciona e para onde o mundo real está indo”, escreveu ele. O “milagre” que limita o aquecimento a menos de 2ºC nos cenários mais esperançosos do IPCC é baseado em uma “suposição de emissões negativas via usinas de energia que queimam biocombustíveis, capturando e sequestrando o CO2”.
Concentrar a atenção no artigo antes de ser revisado é “principalmente para iniciar a discussão científica e obter informações da comunidade científica mais ampla”, acrescentou Simons. “Um artigo tão amplo se beneficia disso, pois os revisores podem ser mais especializados. Com Jim [Hansen], é claro que haverá automaticamente atenção da mídia, mas esse não é o objetivo. As pessoas precisam saber sobre a aceleração do aquecimento”, explicou.
Se a temperatura média global aquecer 2ºC acima dos tempos pré-industriais até 2050, isso significa que as temperaturas sobre a terra provavelmente aumentarão o dobro dessa quantidade, em 4ºC porque as superfícies terrestres têm menos capacidade de absorver o calor que os oceanos.
O 6º Relatório de Avaliação do IPCC deste ano mostra que o nível de aquecimento aumenta rapidamente as chances de secas massivas e generalizadas que podem acabar com a produção de alimentos nas principais áreas de cultivo globais ao mesmo tempo, bem como escassez severa de água e ondas de calor ferozes que deslocariam milhões de pessoas. Os impactos físicos e sociais combinados desestabilizariam algumas regiões e possivelmente provocariam conflitos sobre alimentos e abastecimento de água.