Uma poderosa onda de frio de origem siberiana com características históricas atinge neste período de Natal dos Estados Unidos e o Canadá, além de parte do México, na América do Norte. A extraordinária incursão de ar gelado que desceu muito até latitudes médias produziu mínimas de até -40ºC nos Estados Unidos e -53ºC no Canadá com sensação térmica em alguns lugares de -60ºC.

Não bastasse, a onda polar excepcional foi acompanhada da formação de um incrível ciclone bomba sobre o continente, o que é raro, o que associado ao ar extremamente frio acabou por produzir grandes nevascas acompanhadas de vento com força de furacão em cidades mais ao Norte e do Meio-Oeste norte-americano, além de algumas províncias canadenses.

Situações como estas obviamente despertam dúvidas sobre o aquecimento global, mas o frio em nada afasta o fato que o planeta está aquecendo e seguirá esquentando no longo prazo sem medidas de mitigação de emissões de gases do efeito estufa.

A resposta está em dois conceitos básicos que todos aprendemos na escola. Tempo e clima. Usados com frequência como sinônimos na imprensa e em geral, são distintos. O tempo é a condição momentânea da atmosfera, o curto prazo. O clima é a condição de longo prazo, a média do tempo.

O dia de hoje e o amanhã são o tempo, as condições dos últimos 12 meses são o clima. Assim, o aquecimento do planeta é uma realidade do clima e o frio intenso de agora nos Estados Unidos uma realidade do tempo presente. O aquecimento global é tendência estabelecida por muitas décadas.

O frio muito intenso é uma tendência de poucos dias. Quer ver? O Natal agora transcorre com temperatura absurdamente abaixo do normal nos Estados Unidos. Mas sabe o que vai ocorrer em alguns poucos dias? A temperatura na virada do ano vai estar muitíssimo acima da média em praticamente todo o território norte-americano. E, justamente os locais com o frio mais intenso agora, serão os de temperatura mais acima do normal no Ano Novo.

Mas não apenas isso. Se for analisada a estatísticas destas cidades que agora sofrem com frio excepcional nos Estados Unidos, tanto o número de dias de muito frio como os extremos de temperatura baixa têm diminuído nas últimas décadas.

“Valer-se de um episódio de frio extremo para negar uma tendência de aquecimento do planeta seria o equivalente a dizer que uma semana de muita chuva no sertão nordestino seria uma prova que a região não é semi-árida e frequentemente seca”, observa a meteorologistas Estael Sias.

Olhe para a tendência de longo prazo

A meteorologista da MetSul Estael Sias destaca que ao longo da história o planeta passou por vários ciclos de aquecimento e resfriamento sem qualquer intervenção humana, por causas absolutamente naturais como eras geológicas, mas que o ritmo de aquecimento atual da Terra não tem precedentes. “Não é apenas o aquecimento, mas a velocidade com que está acontecendo, e isso não se explica por causas naturais”.

Os anos mais quentes desde que se iniciaram as medições regulares de temperatura no planeta foram justamente todos de 2014 até 2021, de acordo com a NOAA, e os 10 mais quentes se deram desde 2005. A última década foi a mais quente já registrada no globo e 2021 foi classificado entre os anos mais quentes já observados, mesmo com La Niña que provoca um ligeiro resfriamento planetário.

Se este fim de ano está muito frio em parte da Terra, especialmente na América do Norte, novembro de 2022 foi o 46º novembro consecutivo e o 455º mês (todos) seguido com temperaturas superiores à média do século 20 no planeta. Estas são médias planetárias e não apenas de uma cidade ou região. E, no caso da América do Norte que hoje enfrenta muito frio, a temperatura ficou bastante acima da média no Leste com mais frio do que a média no Oeste dos Estados Unidos e do Canadá.

 Planeta não é um quintal

Algumas poucas áreas do planeta podem ter ficado mais frias nos últimos dias, mas, no geral, quase toda a Terra esquentou nas últimas duas a três décadas. Uma realidade local isolada não pode ser usada para confrontar uma curva de tendência planetária porque para cada um ponto que ficou mais frio existem muitíssimo mais que ficaram mais quentes.

Uma área limitada do planeta não se traduz em uma realidade planetária. No mesmo instante em que os Estados Unidos e o Canadá enfrentam uma brutal onda de frio, no outro lado do Oceano Atlântico a Europa enfrenta uma semanal de Natal de temperatura muito acima dos padrões históricos.

As mudanças no clima não ocorrem de forma uniforme em um mesmo país, quanto mais no mundo inteiro. Mesmo se considerarmos apenas o tempo, o frio extremo de agora nos Estados Unidos não é evidência que contrarie o aquecimento global.

Assim, o que acontece em nosso quintal não é parâmetro para se avaliar uma tendência de escala planetária. Uma onda de frio no inverno, por exemplo, no Sul do Brasil não é evidência que contrarie uma série histórica de décadas mostrando aquecimento na região e no mundo.

Colapso do vórtice polar

Um cinturão de ventos mantém o ar extremamente frio na região do Ártico. Funciona como se fosse uma barragem de vento que segura o ar congelante nas latitudes altas. Nos últimos dias, esta barragem veio abaixo e o vórtice polar se transferiu para a fronteira dos Estados Unidos com o Canadá. Com isso, o ar por demais gelado escapou para as áreas ao Sul da América do Norte.

Estudos sugerem que o aquecimento do Ártico está enfraquecendo a corrente de jato polar, fazendo com que ele fique mais ondulado e permitindo que episodicamente o ar extremamente gelado avance para o Sul em áreas do Hemisfério Norte com eventos de frio de grande magnitude. O Ártico é a região que mais está aquecendo no mundo e a taxa de elevação da temperatura na região tem sido três vezes maior que no restante do mundo.

A questão do impacto do aquecimento global influenciando eventos extremos de frio no Hemisfério Norte, contudo, não é um consenso ainda na ciência e é muito complexa. Para a cientista da NOAA Amy Butler, não há evidências ainda de longo prazo demonstrando mudanças no padrão do vórtice polar que ocorrem, segundo ela, naturalmente e sem a intervenção humana.

Amplificação do Ártico

Por outro lado, o pesquisador Judah Cohen, observou que nos últimos dez anos houve um enorme aumento no número de tempestades de inverno no Nordeste dos Estados Unidos, acompanhando um aquecimento mais acelerado do Ártico, conforme entrevista para o New York Times.

Apesar de um planeta em aquecimento, o clima de inverno permaneceu surpreendentemente resistente nas latitudes médias do Hemisfério Norte, e as manchetes do clima de inverno costumam ser sobre frio intenso, fortes nevascas e o vórtice polar. A frequência inesperada de invernos rigorosos não foi projetada pelos modelos climáticos globais usados para estudar as mudanças climáticas. Tem sido um desafio, diz Cohen, para os cientistas do clima atribuir a recente onda de invernos frios e com neve a uma causa específica.

Uma ideia relativamente nova foi vincular eventos de frio extremo nos Estados Unidos, Europa e Ásia com a amplificação do Ártico, o aquecimento acelerado da região do Ártico a uma taxa várias vezes mais rápida do que no resto do globo. Acreditava-se que o aquecimento acelerado do Ártico se devia principalmente ao rápido derretimento do gelo marinho do Ártico.

Um campo de consenso representa estudos argumentando que a amplificação do Ártico está contribuindo para eventos extremos de frio mais severos. As condições favoráveis para interromper o vórtice polar aumentam a probabilidade de um inverno rigoroso nos Estados Unidos, Europa e Ásia, acreditam esses cientistas.

O outro campo de consenso cita estudos baseados em simulações do gelo marinho do Ártico usando modelos climáticos globais. A maioria desses estudos conclui que qualquer aumento observado no frio é provavelmente devido ao acaso e não à amplificação do Ártico. Nas simulações, a perda de gelo marinho não resulta em mais rupturas de vórtices polares e contribui para um clima de inverno mais ameno nos Estados Unidos, Europa e Ásia.

Para Jim Overland, especialista em clima do Ártico, esses dois pontos são argumentos familiares contra a hipótese mais ampla de que o rápido aquecimento do Ártico pode estar afetando o clima de inverno em latitudes médias de várias maneiras. Ele nem mesmo discorda deles. Em um artigo recente, Overland e vários coautores argumentaram que, se o aquecimento do Ártico está afetando eventos extremos nas latitudes médias, é por meio de conexões intermitentes que amplificam um evento extremo apenas quando as condições atmosféricas de fundo já são favoráveis.