Foi o período nos últimos dois mil anos que alguns historiadores dizem ter sido “o pior para estar vivo” na Terra nos últimos dois mil anos. Não foi na Primeira nem na Segunda Guerra Mundial, tampouco durante as Cruzadas. Foi há 1500 anos, no Hemisfério Norte, que concentrava a maior parte da população mundial e o clima foi o protagonista.
O chamado inverno vulcânico de 536 foi o episódio mais severo e prolongado de resfriamento climático no Hemisfério Norte nos últimos 2 mil anos, de acordo com diversos estudos e análises de historiadores do clima. O inverno vulcânico foi causado por uma erupção, com várias localizações possíveis propostas em vários continentes.
A maioria dos relatos contemporâneos são de autores de Constantinopla, capital do Império Romano do Oriente, embora o impacto das temperaturas mais frias tenha se estendido para além da Europa. Os estudos modernos determinaram que no início de 536 (ou possivelmente no final de 535) uma erupção gigantesca ejetou grandes quantidades de aerossóis na atmosfera, o que reduziu a radiação solar que atingiu a superfície da Terra e resfriou a atmosfera por vários anos.
Em março de 536, Constantinopla, atual cidade de Istambul (Turquia) começou a experimentar céus escuros e temperaturas mais baixas. As temperaturas do verão em 536 caíram até 2,5ºC abaixo do normal na Europa. O impacto persistente do inverno vulcânico de 536 teria sido aumentado entre os anos de 539 e 540 por outra erupção vulcânica que fez com que as temperaturas de verão caíssem até 2,7ºC abaixo do normal na Europa.
Há evidências de ainda outra erupção vulcânica em 547 que teria estendido o período mais frio. As erupções vulcânicas, acompanhadas pela Peste de Justiniano, que começou em 541, causaram quebras de safra, fome e milhões de mortes e iniciaram a Pequena Idade do Gelo, que durou de 536 a 560.
Os cientistas sabem que a origem do resfriamento foi vulcânica, mas não sabem onde se deu a gigantesca erupção que desencadeou o resfriamento. Por isso, até o momento, não há um vulcão de fonte única amplamente aceito para o inverno vulcânico que começou em 536 dC, e permanece a possibilidade de que o frio extremo de 536 a 540 possa ter sido o resultado de vários eventos vulcânicos durante esses anos.
Em 2008, foram obtidas novas evidências de depósitos de sulfato em núcleos de gelo. A evidência apoiou fortemente a hipótese do vulcão e descartou a probabilidade de um “evento causal extraterrestre”, como meteoros ou cometas. O pico de sulfato no século VI d.C. foi ainda mais intenso do que o pico que acompanhou o episódio menor de resfriamento em 1816, popularmente conhecido como o “Ano Sem Verão”, que esteve ligado à explosão do vulcão Monte Tambora.
Em 1984, R. B. Stothers postulou que o evento poderia ter sido causado pelo vulcão Rabaul, em Papua Nova Guiné. Em 1999, David Keys sugeriu que o vulcão Krakatoa explodiu na época e causou as mudanças. Em 2010, Robert Dull, John Southon e colegas apresentaram evidências sugerindo uma ligação entre a erupção Tierra Blanca Joven de El Salvador e o evento de 536.
Um estudo de 2015 apoiou ainda mais a teoria de uma grande erupção em “535 ou início de 536” com vulcões norte-americanos. O mesmo trabalho identificou sinais de uma segunda erupção em 539 ou 540, provavelmente nos trópicos, que teria prolongado o resfriamento da primeira erupção até cerca de 550.Em 2018, pesquisadores da Universidade de Harvard sugeriram que a causa foi uma erupção vulcânica na Islândia. No entanto, o autor do estudo disse à revista Science que as evidências são insuficientes para descartar a hipótese da América do Norte.
O período que se seguiu à erupção gigantesca no final de 535 ou começo do ano 536 foi de fome, miséria e doença no planeta. Para milhões de pessoas aquele período literalmente foi sombrio ou, como alguns historiadores declararam, os piores anos para se estar vivo.
“Pois o sol deu sua luz sem brilho, como a lua, durante todo este ano, e parecia muito com o sol em eclipse, pois os raios que emitia não eram claros nem como está acostumado a derramar”, foi o relato sombrio de Procópio, estudioso proeminente que se tornou o principal historiador bizantino do século VI. “E desde o momento em que isso aconteceu, os homens não estavam livres da guerra, nem da peste, nem de qualquer outra coisa que levasse à morte.”
Cerca de 1.500 anos depois, o historiador medieval da Universidade de Harvard, Michael McCormick, chegou a uma conclusão igualmente sombria sobre não apenas o ano de 536, mas a terrível década que se seguiu àquele ano terrível. Para as pessoas que vivem em toda a Europa em 536, “foi o início de um dos piores períodos para se estar vivo, se não o pior “, disse McCormick.
Tudo foi desencadeado por mudanças climáticas rápidas e drásticas. A erupção vulcânica desencadeou uma Pequena Idade do Gelo, observou ele. E suas ramificações, além das erupções que se seguiram em 540 e 547, foram devastadoras. O céu escureceu por meses, como em um inverno nuclear por uma guerra atômica, com frio inclemente e lavouras arrasadas.
“Aerossóis bloquearam a radiação solar, diminuindo o aquecimento solar da superfície da Terra”, disse, acrescentando que a análise climática da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, feita em anéis de árvores, mostra que a temperatura média do verão “caiu entre 1,5ºC e 2,5ºC em toda a Eurásia”, explica. Os céus permaneceram escurecidos por até 18 meses, relatam vários testemunhos históricas.
Os padrões climáticos foram severamente afetados pela luz solar bloqueada, levando à queda de neve em pleno verão na China e os níveis de temperatura mais baixos em mais de 2.300 anos, de acordo com relatos históricos registrados e análises de reconstrução climática.
Onde quer que fosse, a erupção precipitou um “inverno vulcânico” de uma década, no qual a China sofreu nevascas no verão e as temperaturas médias no planeta despencaram. As colheitas quebraram. As pessoas passaram fome. Então eles pegaram em armas uns contra os outros. Em 541, a peste bubônica chegou ao Egito e passou a matar cerca de um terço da população do império bizantino. Mesmo no distante Peru, aqui na América do Sul, as secas afligiram a cultura Moche até então florescente.
O aumento da cobertura de gelo oceânico (um efeito de feedback do inverno vulcânico) e um mínimo solar profundo (o período regular com a menor atividade solar no ciclo solar de 11 anos do Sol) nos anos 600 garantiram que o resfriamento global continuasse por mais de um século. Muitas das sociedades que viviam em 530 simplesmente não conseguiram sobreviver às convulsões das décadas que se seguiram.
Grande parte da compreensão dos cientistas sobre os impactos do vulcão foi encontrada durante o Historical Ice Core Project, parceria entre a Universidade do Maine e a Universidade de Harvard que McCormick liderou junto com o professor Paul Mayewski, do Climate Change Institute. Usando amostras de gelo da Islândia, a equipe mapeou a linha do tempo arqueológica para identificar quando e onde a erupção vulcânica inicial deve ter ocorrido na Islândia.
O resfriamento global veio acompanhado de peste. Embora o surto da peste bubônica no século VI possa ser menos lembrado do que a recorrência da doença no século XIV (que veio a ser conhecida como Peste Negra), a pandemia do século VI ainda foi responsável por destruir pelo menos um terço da a população do Império Romano Oriental, levando ao seu colapso.
Apelidada de Pandemia Justiniana ou Peste de Justiniano, a doença se espalhou por todo o Egito romano antes de infectar o resto do mundo nos 200 anos seguintes. McCormick disse que o DNA antigo mostrou que o patógeno causador da doença se espalhou para as populações humanas. Após as erupções vulcânicas que alteram o clima e o ano sombrio de 536, McCormick disse que a situação estava fatalmente madura para a praga causar estragos.
Embora tenha dito que ainda não há uma ligação precisa estabelecida entre o início abrupto da era do gelo e a Pandemia Justiniana, McCormick disse que “parece provável que, por exemplo, a escassez de alimentos causada pelo resfriamento repentino em muitas partes da Eurásia tenha enfraquecido as populações e as tornou mais suscetíveis ao patógeno”, explicou.