O Brasil enfrenta a sua primavera mais quente já observada com sucessivas ondas de calor e recordes de temperatura de mais de um século em diferentes cidades. Desde a metade do ano, conforme levantamento do Instituto Nacional de Meteorologia, o país enfrenta uma sucessão de meses mais quentes da série histórica na média nacional.
A chamada primavera meteorológica, trimestre compreendido pelos meses de setembro a novembro, terminará em 2023 com três ondas de calor que reescreveram a estatística climática brasileira, o que confirmou as projeções dos modelos de clima que por meses indicavam que a estação teria temperatura acima a muitíssimo acima da média tanto no Centro-Oeste como no Sudeste do Brasil.
A primeira grande onda de calor da primavera foi a de setembro. Este episódio fez com que a cidade de Belo Horizonte registrasse a maior temperatura da sua história, com uma máxima de 38,6ºC na estação meteorológica da Pampulha. A temperatura chegou a 43,5ºC no dia 26 no município mineiro de São Romão.
O episódio de calor de setembro foi tão extremo que motivou estudo internacional de atribuição climática rápida. Usando métodos publicados e revisados por pares, cientistas do Brasil, Argentina, Holanda, Estados Unidos da América e Reino Unido da World Weather Attribution concluíram que as mudanças climáticas tornaram a onda de calor de setembro cem vezes mais provável.
Mas, então, viria outubro. O mês foi marcado por dois grandes períodos muito quentes com novos recordes de temperatura e calor extraordinário em algumas localidades. O Centro-Oeste do Brasil, em particular, foi duramente castigado pela onda de calor do mês de outubro.
A cidade de Cuiabá registrou 14 dias com temperatura máxima acima dos 40ºC. No dia 19 de outubro, a capital do Mato Grosso atingiu em sua estação convencional uma máxima de 44,2ºC, a maior temperatura oficialmente observada na cidade desde o começo das medições em 1911. Em Goiás, a temperatura no município de Aragarças atingiu 44,3ºC no dia 19, a maior marca oficial do país em 2023 até agora.
E veio o novembro e junto uma terceira e prolongada onda de calor, que novamente fez história e reescreveu as estatísticas. A cidade de São Paulo quebrou o seu recorde de calor para o mês de novembro por três dias seguidos e em dois ficou a apenas 0,1ºC de igualar o seu recorde absoluto de temperatura máxima de 37,8ºC, de 2014.
A cidade do Rio de Janeiro enfrentou vários dias seguido com temperatura máxima acima de 40ºC e as medições indicaram até 43,8ºC na rede da prefeitura. O Alerta Rio mediu ainda por três dias seguidos sensação térmica que beirou os 60ºC. As máxima do dia 18 na cidade do Rio e no estado estiveram entre as mais altas da história.
No Centro-Oeste do Brasil, o Mato Grosso do Sul anotou vários dias seguidos acima de 43ºC. A temperatura mínima na cidade de Porto Murtinho ficou acima dos 30ºC por vários dias. No dia 13, a temperatura não baixou de 32,7ºC. A temperatura máxima na cidade de Cuiabá nos primeiros 18 dias de novembro foi igual ou superior a 40ºC em 14 dias. Todos os dias entre 6 e 18 de novembro foram de máximas acima de 40ºC, ou seja, uma sequência de treze dias seguidos com tardes de mais de 40ºC.
Com a onda de calor extremo, o consumo de energia no Brasil bateu recorde por dois dias seguidos e pela primeira vez na história superou a marca de 100.000 MW. Os números do Operador Nacional do Sistema mostraram um aumento de 16,8% na carga, se considerada a demanda atendida nos primeiros dias de novembro, passando de 86.800 MW para 101.475 MW.
Na segunda-feira, dia 13, a demanda instantânea de carga do Sistema Interligado Nacional (SIN), às 14h17, alcançou 100.955 MW. Foi a primeira vez na história do sistema interligado de energia brasileiro em que a carga superou a marca de 100.000 MW. A maior marca anterior era de 97.659 MW, em 26 de setembro, também durante uma onda de calor.
Houve recorde de demanda na segunda de energia elétrica também no subsistema Sudeste e Centro-Oeste com o pico de carga superando, pela primeira vez, a marca de 60.000 MW com 60.735 MW. O recorde regional até então era de 57.791 MW, ocorrido no dia 26 de setembro deste ano.
Primavera tem mais calor extremo que o verão em vários estados
O calor extraordinário dos últimos dias fez com que muitos comentassem sobre o que pode vir no verão com temperaturas ainda mais altas. “Se está assim agora, imagina no verão”, foi o que mais se leu nas redes sociais. Mas o Brasil é um país de dimensões continentais e as suas características climáticas não são idênticas em todo seu território. Assim, em princípio, a primavera quente para a maioria das áreas não é um indicativo de que calor será ainda maior nos meses do verão.
Por quê? No Norte, por exemplo, o que é verão na maior parte do Brasil é o que se chama de inverno amazônico, a estação chuvosa, o que impede tantos extremos de temperatura alta. No Centro-Oeste e no Sudeste, os meses do verão são os mais chuvosos do ano com instabilidade frequente que dificulta ondas de calor prolongadas, como as da primavera deste ano, associadas a um bloqueio atmosférico com muitos dias seguidos de sol e tempo demasiadamente quente.
Goiânia tem temperatura máxima média mensal de 32,7ºC em agosto, 34,0ºC em setembro e 33,2ºC em outubro, mas na estação verão as média máximas mensais são inferiores com 30,6ºC em dezembro, igual valor em janeiro e 31,0ºC em fevereiro.
Ainda sobre a capital goiana, como um exemplo de que o pior do calor não ocorre normalmente no verão no Centro-Oeste, mas no fim do inverno e na primavera. De acordo com a estatística 1991-2020, a cidade teve, em média, por ano, 4 dias acima de 35ºC em agosto, 13 em setembro e 9 em outubro, entretanto somente um em média em dezembro, janeiro e fevereiro. De uma média de 31 dias por ano com mais de 35ºC em Goiânia, 26 ocorrem apenas no trimestre agosto a outubro.
O mesmo ocorre em Brasília com médias máximas superiores no final do inverno e no começo da primavera do que não verão. E também no interior de São Paulo. Em Franca, o número média de dias acima de 30ºC é de 12 em setembro e também 12 em outubro. Dezembro tem quatro e janeiro e fevereiro cinco cada um.
É o que se vê também em áreas de Minas Gerais mais próximas do Brasil Central, onde a curva de temperatura tem forte influência da estação seca. Caso do Triângulo Mineiro. Uberaba tem as suas maiores médias máximas anuais em setembro e outubro, o que se repete em Uberlândia.
A cidade de São Paulo é um caso em particular. Os meses mais quentes do ano, na média mensal, são os do verão, de dezembro a março, embora seja o período mais chuvoso do ano. Por outro lado, os extremos de calor com dias de marcas muito altas costumam ocorrer no final da temporada seca, em setembro e outubro.
O que regula os extremos de calor, assim, em grande parte do Brasil é a chuva. A existência de uma temporada seca e outra chuvosa. Há uma temporada de monções (chuva), marcante no Centro-Oeste e no Sudeste do Brasil. No verão, a atmosfera está mais úmida e a chuva é bastante frequente, o que tende a frustrar extremos de calor maiores.
Já no fim do inverno e no começo da primavera, quando ainda chove pouco normalmente, e a atmosfera começa a ficar mais aquecida, ocorrem estes extremos de temperatura alta no Centro-Oeste, no Sudeste e em áreas do Nordeste de clima mais árido ou distantes da costa.
Um exemplo de análogo histórico de como é equivocado o raciocínio linear de que uma primavera muito quente leva necessariamente um verão ainda mais quente é o do período 2020-2021. O trimestre de setembro a novembro de 2020 (primavera) foi de temperatura muito acima da média no Centro-Oeste e no Sudeste com uma poderosa onda de calor, mas o trimestre de verão na sequência (dezembro de 2020 a fevereiro de 2021) não repetiu a tendência.
A maior temperatura registrada oficialmente no Brasil até hoje foi de 44,8°C em Nova Maringá, Mato Grosso, em 4 e 5 de novembro de 2020, superando o recorde também oficial de Bom Jesus, Piauí, em 21 de novembro de 2005, de 44,7 °C, de 5 de novembro de 2005. Assim, as duas marcas não se deram no verão.
Onde o calor deve ser pior no verão que na primavera
A previsão da MetSul Meteorologia indica um verão de temperatura acima a muito acima da média na maior parte do Brasil em 2024. Com menos chuva do que o habitual, o Centro do país e áreas do Norte e do Nordeste podem anotar temperaturas mais altas ou muito mais elevadas do que o habitual, mas não necessariamente tão extremas como desta primavera em áreas como o Centro-Oeste, interior de São Paulo e Minas Gerais.
Todos os modelos de clima indicam temperatura acima a muito acima da média para o trimestre de verão no Brasil com os desvios mais positivos persistindo no Centro-Oeste e no Sudeste ante a tendência de chover menos do que o habitual em vários pontos das duas regiões.
Os estados do Sul e o Rio de Janeiro estão entre as áreas do Brasil que devem ter um verão muito mais quente do que a primavera, até porque o excesso de chuva durante os últimos meses reduziu o número de dias quentes e com calor muito intenso no Sul do país.
Dentre as maiores cidades do Brasil, o Rio de Janeiro não apenas tem as maiores médias de temperatura do ano no verão como tem na estação os seus maiores extremos de temperatura. A cidade do Rio é uma que em 2024 pode ter um verão por demais quente e com muitos dias de máximas extremas. O risco será ainda maior se ocorrer um aquecimento do Atlântico na costa brasileira.
Nenhuma região do Brasil, contudo, tem risco tão alto de dias de calor muito intenso a extremo como o Sul. Isso porque, diferentemente de grande parte do país, os estados mais ao Sul, em particular o Rio Grande do Sul, não possuem os seus extremos anuais de calor modulados por chuva.
Diferentemente do Sudeste e do Centro-Oeste, que possuem meses muito secos em quase nada chove (inverno) e outros de muita chuva (verão), a maior parte do Sul do Brasil não tem diferenças enormes em suas médias de chuva entre o verão e o inverno, com maior regularidade na precipitação anual, exceção de áreas do Paraná.
O verão de 2024 se desenha quente com temperatura acima da média no Sul do país. Diferentemente do período de 2020 a 2023, sob La Niña, que favoreceu estiagens em todos os verões, o verão próximo deve ter mais chuva e umidade, o que vai significar um maior número de dias abafados com noites mais quentes e maior frequência de tempestades de verão.
As piores ondas de calor da história do Rio Grande do Sul, de 1917, 1943 e 2022, se deram todas sob La Niña. Isso porque o fenômeno reduz muito a chuva e a seca favorece períodos quentes muito prolongados, com tempo seco e calor se retroalimentando em bolhas de calor. Foi o que ocorreu em janeiro de 2022 com 15 dias seguidos acima de 40ºC no estado gaúcho.
Mas onda de calor também ocorrem no Sul durante o El Niño. Um exemplo é o verão de 2010, no El Niño de 2009-2010, quando o Rio Grande do Sul enfrentou uma forte onda de calor. Além das máximas extremas, o que foi destacado no episódio de calor de 2010 foram as mínimas muito altas com maior umidade. O recorde de maior mínima oficial de Porto Alegre, de 27,9ºC, é de 2 de fevereiro de 2010.
Mesmo com máximas inferiores às ondas de calor de 2014 e 2022, a onda de calor do verão de 2010 teve noites mais quentes e dias mais úmidos, o que contribuiu para índices de calor (sensação térmica) opressivos naquele episódio, especialmente em finais de tarde e durante a noite.