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Cientistas estão impressionados com a cobertura de gelo marinho na Antártida que nunca desde o começo das observações por satélites em 1979 esteve tão abaixo do normal para a época do ano. Depois de atingir um mínimo recorde no verão no início deste ano, o gelo marinho da Antártica continua quebrando recordes. Em meio à fase de crescimento do inverno, atingiu um nível recorde de baixa, muito abaixo do recorde anterior, para esta época do ano.

Os dados do National Snow and Ice Data Center (NSIDC) registravam a extensão do gelo marinho da Antártida em 11,7 milhões de quilômetros quadrados em 27 de junho. São 2,6 milhões de quilômetros quadrados abaixo da média histórica de 1981–2010. O valor estava 1,2 milhão de quilômetros quadrados abaixo da menor extensão já registrada no dia, observada em 2022.

A comparação da concentração de gelo marinho no final de junho de 2023 com a borda mediana do gelo para a mesma época do ano mostra concentrações de gelo marinho abaixo da média em quase todo o continente antártico. Somente em partes do Norte do Mar de Amundsen e perto da Antártida Ocidental, o gelo do mar se espalha sobre a borda mediana do gelo de longo prazo.

Enquanto o mapa fornece um retrato instantâneo das condições do gelo marinho, uma série temporal fornece o contexto histórico. Todos os anos, nos hemisférios Norte e Sul, o gelo marinho cresce e diminui com as estações. Atinge seu mínimo no fim do verão e seu máximo no fim do inverno.

Para ficar claro. Neste momento, a cobertura de gelo marinho na Antártida não passa por um processo de diminuição. Com o inverno, o gelo no mar está aumentando. Só que a uma taxa muitíssimo menor e mais lenta que o normal, o que acaba por produzir o enorme desvio em relação aos padrões históricos.

Em outras palavras, deveria ter muito mais gelo no mar neste fim de junho do que se observa, embora o gelo esteja aumentando por ser inverno no Hemisfério Sul e a massa de gelo na Antártida naturalmente aumentar depois do mínima anual de março.

Há meses, a cobertura de gelo marinho na Antártida vem abaixo da média e quebrando recordes de mínimos históricos. A extensão do gelo em 2023 (azul brilhante) foi ligeiramente menor do que o recorde anterior (2022, mostrado em magenta) no mínimo de verão em fevereiro, mas muito menor no final de junho, o início da temporada de crescimento do gelo no inverno.

NOAA: situação é “incomum”

O comportamento do gelo marinho varia dia a dia e ano a ano por uma série de razões, e desvios da média de longo prazo, mesmo substanciais, já foram observados antes. Em comparação com o Ártico, o gelo marinho da Antártida exibe uma maior variação de extensões anuais máximas e mínimas, devido em grande parte às diferenças geográficas entre as duas regiões. “Mesmo assim, a atual baixa extensão do gelo marinho antártico é incomum”, escreveu a NOAA, agência de clima dos Estados Unidos, em comunicado.

Em contraste com o Ártico, que mostrou um declínio de décadas na extensão do gelo marinho, a Antártida não exibiu uma tendência significativa de longo prazo. Em 2014, o gelo do mar antártico acumulou uma extensão máxima de inverno de todos os tempos.

A partir de 2016, no entanto, a extensão do gelo marinho da Antártida caiu principalmente abaixo da média de 1981–2010, e as extensões de 2023 estabeleceram mínimos recordes diários desde abril, mesmo abaixo das extensões do detentor do recorde anterior, em 2022.

O atual comportamento do gelo marinho da Antártida, que a NOAA descreve como “extraordinário” aumenta a questão de saber se isso poderia ser o início de uma tendência de longo prazo relacionada às mudanças climáticas ou oceânicas, mas responder a essa pergunta exigirá mais tempo, dados e pesquisa, e os cientistas ainda não têm uma resposta.

Possíveis causas para menos gelo

Enquanto o impacto das mudanças climáticas pelo aquecimento do planeta é muito evidente no Ártico, os sinais são menos claros na Antártida. Vários estudos mostram que nas últimas décadas a oscilação do gelo marinho na região teve muito maior influência de variabilidade natural do clima, sem interferência humana.

Em 2016, a cobertura de gelo marinho foi também muito inferior ao normal, embora não tanto como agora. Estudos posteriores demonstraram que a queda acentuada da cobertura comparada à média histórica teve causas naturais decorrentes da variabilidade natural do clima.

O período de 2015 e 2016 teve um forte El Niño. O evento foi semelhante a outros eventos de El Niño muito intensos, em 1982-83 e 1997-98. Ao contrário do evento de 1997-98, no entanto, só foi seguido por um La Niña relativamente fraco em 2016.

O padrão tropical do El Niño cria uma série de zonas de alta e baixa pressão que causam temperaturas oceânicas excepcionalmente quentes nos mares de Ross, Amundsen e Bellingshausen, no Leste da Antártica. Mas, em 2016, os pesquisadores descobriram que essas piscinas de superfície excepcionalmente quentes duraram mais do que o normal e afetaram o congelamento da água do mar na temporada seguinte.

Enquanto isso, as observações mostraram que os ventos que circundam a Antártida foram excepcionalmente fracos em 2016, o que significa que eles não afastaram o gelo marinho da costa antártica para abrir espaço para a formação de novo gelo. Isso afetou a formação de gelo em grande parte do Oceano Antártico.

“Foi uma combinação realmente rara de eventos, algo que nunca vimos antes nas observações”, disse Malte Stuecker, pesquisador em ciências atmosféricas da Universidade de Washington. Ele descreve o que ocorreu como uma “tempestade perfeita de condições tropicais e polares”.

Os pesquisadores analisaram 13.000 anos de simulações de modelos climáticos para estudar como essas condições únicas afetariam o gelo marinho. Juntos, o padrão El Niño e os ventos do Oceano Antártico explicaram cerca de dois terços do declínio de 2016. O resto pode ser devido a grandes tempestades incomuns, que um artigo anterior da British Antarctic Survey sugeriu que quebraram blocos de gelo.

Agora, em 2023, o El Niño está de volta e a tendência é de intensificação durante os próximos meses, o que sugere que os mínimas de cobertura de gelo na Antártida não apenas podem seguir até 2024, como podem aumentar. O verão de 2024 pode ter gelo marinho em quantidade pequena como jamais vista na era observacional.

Má há um outro fator em 2023 que os cientistas precisão levar em conta em seus estudos sobre o que está ocorrendo com o gelo no mar ao redor da Antártida. A enorme erupção vulcânica de Tonga, no Pacífico Sul, em janeiro de 2022, injetou uma quantidade gigantesca de vapor d´água na estratosfera, o que interfere no ozônio e pode ter implicações no clima polar do Sul do planeta.

Quais reflexos pode ter no Brasil

Existe farta pesquisa na literatura técnica sobre os efeitos no clima da redução da cobertura de gelo marinho, mas a grande maioria dos trabalhos se refere ao Ártico e ao Hemisfério Norte, não a Antártida e o Hemisfério Sul. Os poucos trabalhos existentes apontam que há potenciais reflexos no clima da parte meridional do planeta pela redução do gelo no mar antártico, mas as conclusões a partir de modelagem numérica apresentam discrepâncias.

Um dos principais estudos, publicado na prestigiada Geophysical Research Letters, em 2019, por Holly Aires, da Universidade de Reading (Reino Unido), oferece pistas de como o gelo marinho em níveis baixos recordes neste inverno na Antártida pode ter reflexos no clima no Brasil.

De acordo com o estudo, que considerou cenário futuro de emissões de gases estufas em níveis altos, a perda de gelo marinho aumenta a fase negativa do Modo Anular do Sul, também chamada de Oscilação Antártica. A pesquisa aponta que este impacto tende a ser observado principalmente na primavera.

“A resposta negativa do Modo Anular Sul reflete em grande parte um enfraquecimento da corrente de jato (ventos muitos fortes em altitude ao redor da Antártida) e, em menor grau, um deslocamento do jato na direção do equador. Na primavera, encontramos evidências de um vórtice estratosférico polar enfraquecido em resposta à perda de gelo marinho”, assinala o estudo.

Por que isso importa?

A chamada Oscilação Antártica (AAO) ou Modelo Anular Sul ou Meridional é uma das mais importantes variáveis que impacta as condições no Brasil e no Hemisfério Sul, tanto na chuva como na temperatura.

Do que se trata? Trata-se de um índice de variabilidade relacionado ao cinturão de vento e de baixas pressões ao redor da Antártida. A Oscilação Antártica tem duas fases. A positiva e a negativa. Na positiva, o cinturão de vento ao redor da Antártida se intensifica e se contrai em torno do Polo Sul. Já na fase negativa, o cinturão de vento enfraquece e se desloca para Norte, no sentido do Equador, obviamente sem atingir a faixa equatorial.

Com a maior ondulação da corrente de jato na fase negativa, o que se torna mais provável com a redução de gelo marinho durante a primavera, de acordo com o estudo, crescem as chances de episódios de chuva mais volumosa e ciclones na primavera.

Estudos mostram que na fase negativa há uma maior propensão para chuva no Sul e Sudeste do Brasil. Um trabalho publicado sobre vazão de rios do Rio Grande do Sul mostrou que os mais altos índices de vazão se deram sob El Niño mais Oscilação Antártica negativa, ou seja, a fase negativa aumenta a chuva que já é aumentada sob El Niño, piorando ainda mais o risco de eventos extremos de precipitação e enchentes.

UNIFEI

O mapa acima mostras as anomalias históricas de precipitação sob El Niño e fase negativa da Oscilação Antártica durante o trimestre da primavera (setembro a novembro). Como se vê, a tendência é chuva acima a muito acima da média no Sul, parte do Centro-Oeste e do Sudeste com os maiores desvios positivos de chuva entre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina.

As fases da Oscilação Antártica influenciam ainda o posicionamento das ciclogêneses (formação de ciclones extratropicais) em todo o Hemisfério Sul. Quando na fase negativa, os ciclones extratropicais tendem a ocorrer em latitudes mais baixas do que na fase positiva, logo mais distantes da Antártida e mais próximos do Brasil.

Em 2016, na última vez em que houve uma queda tão acentuada da cobertura de gelo marinho em relação à média histórica, houve um intenso ciclone junto à costa gaúcha no fim do mês de outubro. Diferentemente do ciclone de junho de 2023, que teve a chuva como maior impacto, o de outubro de 2016 foi marcado pelo vento muito intenso e maré de tempestade na orla com ondas muito altas e estragos.

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