O diálogo entre religião e ciência jamais foi pacífico na história. Sempre foi no passado e ainda hoje é em determinados temas como a pesquisa de células-tronco. A Igreja Católica tem ao mesmo tempo páginas sombrias e também iluminadas nos seus dois milênios em se tratando de teorias e cientistas. Há os casos célebres de perseguição a Galileu Galilei e Giordano Bruno pela defesa de idéias astronômicas, depois consagradas e reconhecidas pela própria Igreja. Giordano Bruno foi queimado vivo em Roma, no Campo dei Fiori, após ter passado oito anos nos cárceres da Inquisição. Antes de executá-lo, carrascos deceparam sua língua para impedi-lo de proferir “palavras horríveis”. A condenação do filósofo como herege foi por ordem do papa Clemente VIII. Em 2000, 400º ano da morte de Bruno, o cardeal Angelo Sodano, nome forte do Vaticano nos pontificados de João Paulo II e Bento XVI, qualificou a morte como um episódio “triste”, mas defendeu os acusadores.

A escolha na quarta-feira de Mario Bergoglio, o arcebispo de Buenos Aires, como Papa Francisco lançou luz sobre a Congregação de Jesus, ordem ao qual pertence o novo bispo de Roma. É o primeiro papa que vem dos jesuítas, congregação que ao longo de séculos tem se envolvido em ciências naturais, desde os seus primórdios em 1540. A abertura de escolas jesuítas, entre os séculos 16 e 17, coincidiu com o nascimento e o progresso da ciência moderna. Matemática, Astronomia e ciências naturais sempre foram áreas de interesse dos jesuítas desde o começo há meio milênio. E segue até os dias de hoje.


Tradição importante dos jesuítas é o estabelecimento de observatórios. Os primeiros foram instalados em escolas da congregação no século 18 em Lyon, Marselha, Mannheim, Viena e Praga, no continente europeu. A era de ouro dos observatório, porém, teve início na metade do século 19 e permaneceu até meados do século 20. De 1824 até os dias atuais, 73 observatórios ao redor do mundo foram operados por jesuítas. Alguns deles se tornaram importantes centros de pesquisa mundiais com reputação em Astronomia, Meteorologia e Geofísica, enquanto alguns mais modestos duraram poucos anos. Os primeiros centros de pesquisa se concentraram em Astronomia e Meteorologia, campos depois ampliados para pesquisa de geomagnetismo, física solar e sismologia.

A contribuição dos jesuítas para o campo da Meteorologia é pouco conhecida até os dias atuais, mesmo por especialistas da área. Desde o século 18, a congregação, por ações institucionais ou individuais, dedicou grandes esforços para aprimorar as observações do tempo e pesquisas do clima ao redor do mundo. Os estudos foram realizados no âmbito do interesse da congregação por ciências naturais. Na metade do século 19, quando tinha início a Meteorologia moderna, os jesuítas instalaram diversos observatórios do tempo. Muitos deles eram localizados na Ásia, África e na Américas, e, em certos casos, foram os primeiros de alguns países.

Os jesuítas não se limitaram a instalar centros de observação, que produziram séries históricas valiosas de dados, mas tiveram grande influência na Meteorologia também quando iniciaram suas missões em países subdesenvolvidos da América Latina, Ásia e África, regiões que experimentam fenômenos nada freqüentes na Europa como ciclones tropicais. A ausência de outras instituições cientificas nestas regiões fez do trabalho pioneiro da congregação ser de grande importância. Algumas destas iniciativas deram até origem ao que depois viriam a ser alguns serviços nacionais de Meteorologia. Muitos dos jesuítas tinham formação científica em importantes universidades, como C. E. Deppermann, diretor do observatório de Manila (Filipinas), que formou-se em Física pela Universidade John Hopkins em 1925.

Na metade do século 18, tiveram início as observações meteorológicas jesuítas em Lyon, Marselha, Praga e Viena. Na França, L. Beraud (1702-1777) e E. Pezenas (1692-1776), em Lyon e Marselha respectivamente, fundaram os observatórios meteorológicos com medições por instrumentos de temperatura, pressão atmosférica, umidade e chuva. Em 1750, J. Stepling (1716-1778) criou o observatório da Escola de Praga, onde entre 1752 e 1774 foram feitas medições de pressão, temperatura e umidade. Nas missões, as primeiras descrições climáticas das recém descobertas terras nas Américas foram publicadas por J. de Acosta (1539-1600) em 1590. Os jesuítas introduziram o termômetro e o barômetro na China no final do século 17. De 1757 a 1763, J. Amiot realizou uma série de observações meteorológicas na China depois publicadas na França.


Em 1930, operavam mais de 30 centros de observação meteorológicas liderados por jesuítas ao redor do mundo. Em alguns deles, a principal tarefa era o monitoramento, pesquisa e previsão de ciclones tropicais, notadamente os de Belén (Havana), Manila, Xujiahui (China) e Antananarivo (Madagascar). O observatório de Manila, fundado em 1865 por jesuítas espanhóis, foi a primeira estação meteorológica a ter observações rotineiras no Extremo Oriente. Em 1884, o governo espanhol deu ao observatório o status oficial de centro do Serviço Meteorológico Nacional das Filipinas. Em 1901, o status foi renovado com as autoridades dos Estados Unidos no recém estabelecido Bureau de Meteorologia das Filipinas. Entre 1865 e 1880 chegavam a ser feitas seis observações diárias (mais que nas estações convencionais do Inmet hoje). Até observações horárias chegaram a ser feitas numa era em que sequer se sonhava ou cogitava de estações automáticas.

Uma rede de estações meteorológicas secundárias foi instalada em diferentes ilhas do arquipélago. Em 1900, eram 72. Em 1930, o Bureau de Meteorologia das Filipinas tinha se tornado uma organização complexa com mais de 300 estações e perto de 200 empregados. Na invasão japonesa do país, durante a Segunda Guerra Mundial, o observatório de Manila foi completamente destruido. Reconstruído depois da grande guerra, não mais efetuou registros meteorológicos e passou a trabalhar só com Astronomia, geomagnetismo, física solar e ionosférica, e sismologia.

O observatório de Zikawei (Xujiahui) também foi uma instituição de primeira classe em Meteorologia durante os 67 anos de sua existência. Estava ligado por telégrafos com mais de 50 estações no Extremo Oriente, e em 1915 chegavam mais de 200 telegramas por dia. Os dados permitiram criar mapas meteorológicos para uma grande parte da China. Foram realizados estudos da componente vertical do vento por M. Dechevrens (1845-1923) e depois continuados por S. Chevalier (1852-1930). P. Lejay (1898-1958), diretor do observatório de 1930 a 1939, levou a cabo alguns dos primeiros estudos sobre a proporção de ozônio na alta atmosfera, a estrutura da ionosfera e radiação solar.

Já o observatório de Antananarivo, no Madagascar, estudou as condições do tempo na ilha por 78 anos. Foi montada uma rede de 25 estações meteorológicas. No período, foram publicados 27 volumes de observações entre 1890 e 1915. Por sua vez, o observatório de Ksara foi escolhido em 1920 como o centro do recém criado Serviço Meteorológico Nacional da Síria, e dirigido pelo jesuíta B. Berloty (1856-1934). Bertoly e J. Plassard publicaram diversos estudos sobre o tempo e o clima da Síria e o Líbano. Os jesuítas ainda realizaram estudos climáticos pioneiros no Zimbábue e na Índia, em áreas até então sem qualquer registro meteorológico.

Na América Latina, o observatório mais importante foi o de Belém (Havana), reconhecido pelo seu trabalho de ciclones tropicais no Caribe. Os jesuítas ainda realizaram estudos em Meteorologia no México, Bolívia, Colômbia e na Argentina, país do novo papa. P. Spina (1839-1925), diretor do observatório de Puebla entre 1879 e 1901 publicou um completo estudo sobre o clima mexicano. O Observatório de Física Cósmica de San Miguel, na Argentina, apesar de mais dedicado ao estudo da atividade solar e da radiação cósmica, também tinha uma estação meteorológica completa e realizava pesquisa sobre raios. O trabalho dos jesuítas foi reconhecido pelos governos do Equador e da Colômbia que indicaram a congregação para organizar seus respectivos serviços nacionais de Meteorologia.

O trabalho mais importante dos jesuítas, contudo, foi no campo de pesquisa dos ciclones tropicais no Caribe e no Extremo Oriente. As primeiras pesquisas foram conduzidas por Benito Viñes Martorell (1837-1893), na foto ao lado junto a um equipamento científico para pesquisa meteorológica que importou da França, no observatório cubano de Havana que dirigiu entre 1870 a 1893. Em 1876, Viñes planejava organizar uma rede de estações meteorológicas no Caribe para aprimorar as observações que eram usadas nos seus prognósticos de furacões. As estações realizariam registros em horários fixos e os dados remetidos por telégrafo para Havana. Em 1888, eram 20 estações instaladas no Caribe, funcionando regularmente em 20 diferentes ilhas. Entretanto, em 1891, por falta de dinheiro e de apoio de governos locais, apenas quatro estações seguiam operando: Santiago de Cuba, Barbados, Jamaica e Saint Thomas. Remetiam informações diárias para Havana durante a temporada de furacões (junho a novembro). O padre Benito Viñes Martorell redigiu em 11 de setembro de 1875 o que se acredita ser o primeiro alerta de ciclone tropical documentado na história da Meteorologia. Publicou em 1877 trabalho com as posições geográficas, trajetórias e a periodicidade dos furacões, o que ficou conhecido como “Leyes de Viñes”.

O Observatório de Manila também contribuiu com a observação e previsão de tufões no Pacífico Oeste. F. Faura (1840-1897) fez a primeira previsão de um tufão passando por Manila em 20 de novembro de 1879. Devido aos seus alertas para as autoridades, o número de vítimas foi muito menor. Entre 1879 e 1882 alertas foram emitidos para 53 tufões e em apenas três casos a trajetória foi muito diferente da prevista, em um momento da ciência que sequer se cogitava de modelos numéricos. Faura reconheceu semelhanças entre tufões no Pacífico e furacões no Caribe e em 1882 publicou um compêndio de sinais precursores no tempo de ciclones tropicais. J. Algué (1859-1930) escreveu o primeiro livro sofre tufões nas Filipinas. Ele identificou zonas de origem e trajetórias médias dos ciclones. Houve estudos ainda de ciclones na China e em Madagascar. Os jesuítas formularam teorias sobre a diferença de ciclones tropicais e extratropicais, um equipamento que se tornou popular em embarcações para prever a proximidade de tufões e L. Froc (1859-1932) publicou um atlas com as trajetórias de 620 tufões no Pacífico entre 1893-1919, uma notável contribuição à Meteorologia numa era quase sem tecnologia.

* Baseado no trabalho Jesuit’s contributions to Meteorology, de Agustín Udias, Departamento de Geofísica e Meteorologia da Universidad Complutense de Madrid, publicado pelo boletim da Sociedade de Meteorologia dos Estados Unidos em outubro de 1996. O autor tem o livro sobre o tema intitulado Searching the Heavens and the Earth: The history of jesuit observatories. (Colaborou neste trabalho da MetSul Meteorologia Luiz Carlos Martins Filho)