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O episódio de chuva extrema que atingiu o Litoral Norte do Rio Grande do Sul com saldo de uma morte teve em grande parte a mesma natureza do evento excepcional de precipitação que atingiu o Litoral Norte de São Paulo entre os dias 18 e 19 de fevereiro, onde morreram 66 pessoas, mas os números mostram que, embora a chuva tenha sido muito volumosa no Litoral Norte gaúcho, os acumulados na costa paulista foram absurdamente altos.

A chuva extraordinária no litoral de São Paulo, particularmente entre o Guarujá, São Sebastião e Bertioga foi toda ela resultante de efeito orográfico (associado ao relevo) com o fluxo de umidade do oceano encontrando a barreira da Serra do Mar, onde se condensou e gerou as precipitações extremas.

Havia um centro de baixa pressão no litoral de São Paulo com uma massa de ar frio no Sul do Brasil atipicamente intensa e rara para o mês de fevereiro que gerou vários recordes de mínimas para o mês, alguns de um século. O episódio de chuva extrema, ademais, durou cerca de doze horas.

No caso do litoral do Rio Grande do Sul, a fase mais extrema da chuva ocorrida entre domingo e segunda também foi resultado de um centro de baixa pressão na costa levando umidade do mar para o continente que ao encontrar a Serra do Mar acabou por gerar volumes extremos (chuva orográfica). Só que foi um evento de instabilidade de quatro dias e antes já havia chovido forte na região pela interação do ar quente e úmido (convecção e não orografia) com a baixa pressão que ainda não estava na costa.


As diferenças de volumes são grandes entre os dois episódios. Os acumulados no Litoral Norte gaúcho em 24 horas até 21h de segunda-feira, o dia de chuva mais intensa, foram de 147 mm em Maquiné, 137 mm em Itati, 134 mm em Três Forquilhas e 73 mm em Terra de Areia. Choveu em 96 horas na região 256 mm em Maquiné, 197 mm em Três Forquilhas, 180 mm em Itati, 175 mm em Torres, 162 mm em Três Cachoeiras e 142 mm em Xangri-lá.

No caso de São Paulo, a chuva em 24 horas, entre 9h do sábado (18/2) e 9h do domingo (19/2), somou 680 mm em Bertioga, 626 mm em São Sebastião, 388 mm no Guarujá, 337 mm em Ilhabela, 335 mm em Ubatuba, 234 mm em Caraguatatuba: 234 mm, 225 mm em Santos, 203 mm em Praia Grande e 186 mm em São Vicente.

A precipitação em alguns pontos entre Bertioga e São Sebastião somou até 400 mm ou mais em menos de seis horas. No dia 18, entre 20h50 e 21h40, o ponto de medição na praia de Guaratuba, em Bertioga, registrou 143 mm. Das 21h50 a 22h40, o pluviômetro acusou mais 130 mm. Ou seja, em duas horas choveu 273 mm, mais que em qualquer registro na soma de quatro dias no Litoral Norte gaúcho. Houve acumulados em Bertioga de até 25 mm, cerca de 10% da média de chuva do mês, em apenas dez minutos.

Volumes de chuva de 500 mm a 700 atingiram a região mais castigada no Litoral Norte de São Paulo em fevereiro | NELSON ALMEIDA/AFP/METSUL METEOROLOGIA

Volume de chuva chegou a 250 mm em alguns pontos do Litoral Norte gaúcho na soma entre o fim de semana e a segunda-feira | PREFEITURA MUNICIPAL DE ITATI

Assim, embora em alguns pontos do Litoral Norte gaúcho tenha chovido quase a metade do que choveu em algumas praias no Litoral Norte paulista, os acumulados no evento do Rio Grande do Sul se deram numa sequência de dias e os volumes mais altos ao longo de 24 horas. Já em São Paulo, a chuva mais excepcional se deu em intervalo de pouquíssimas horas com taxas de precipitação (relação instantânea de volume de chuva por hora) muito mais altas.

A chuva orográfica, presente nos dois episódios, é o maior perigo para eventos de precipitação extrema no Brasil e ocorre principalmente numa faixa que acompanha a Serra do Mar, do Litoral Norte gaúcho ao Rio de Janeiro.

A chuva orográfica é a precipitação induzida pelo relevo. Umidade que vem do oceano, trazida por vento, em razão de uma massa de ar frio ou um ciclone (centro de baixa pressão), ao encontrar a barreira do relevo da Serra do Mar, ascende na atmosfera e encontra temperatura mais baixa à medida que ascende na atmosfera com camadas mais frias.

Isso leva à condensação e à ocorrência de chuva induzida pelo relevo. Em um exemplo bem didático e simples de entender. O que acontece se você chega na frente de um espelho e soltar ar da sua boca? O espelho que tem uma superfície mais fria vai ficar embaçado (úmido) e molhado. Com a chuva orográfica ocorre o mesmo.

O ar mais úmido e quente (analogia com ar que sai da boca) encontra um obstáculo físico que é o relevo (como o espelho) e ao chegar nesta barreira que são os morros sobe na atmosfera e encontra temperatura mais baixa, condensando-se o vapor de água e formando chuva.

Foi o que ocorreu entre domingo e ontem em cidades do Litoral Norte gaúcho e da Serra mais próximos do Litoral Norte gaúcho. Por isso, os volumes de chuva foram muito mais altos nos municípios juntos aos morros e entre os morros da Serra do Mar no Litoral Norte que em estações na beira da praia.

Aí há outra diferença importante para o evento do desastre no litoral de São Paulo. No Litoral Norte paulista, os morros da Serra do Mar estão muito próximos do oceano, em muitos locais na beira da praia, e com grande densidade populacional. Já no Litoral Norte gaúcho, as elevações estão mais distante da beira da praia com muito menor densidade populacional que nas praias, e isso atenua os impactos da chuva orográfica.

Episódios de chuva orográfica são de alto risco porque costumam trazer acumulados de precipitação localmente muito altos e que não raro até acabam superando as projeções dos modelos numéricos. Os litorais de Santa Catarina, São Paulo e Rio de Janeiro, pelo seu relevo, são os de maior risco de eventos de chuva extrema de natureza orográfica no Brasil, como se viu recentemente no Litoral Norte paulista, mas o Litoral Norte gaúcho por ter em parte da sua extensão a Serra do Mar a Oeste também sofre ocasionalmente os efeitos de chuva orográfica.

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