Um fenômeno raro no clima da atmosfera superior está prestes a acontecer e pode mudar completamente o início do inverno no Hemisfério Norte. Meteorologistas alertam para um aquecimento súbito da estratosfera, evento capaz de provocar uma forte desorganização e até o colapso do vórtice polar, a grande circulação de ventos que normalmente mantém o ar gelado preso perto do Polo Norte.

Colapso do vórtice polar do Ártico pode trazer eventos extremos de frio e neve na América do Norte | KEREM YUCEL/AFP/METSUL METEOROLOGIA
Quando esse sistema está forte, o frio permanece confinado no Ártico. Mas, quando enfraquece ou colapsa, o ar gelado escapa para latitudes mais baixas e alterando o clima, trazendo ondas de frio e neve para os Estados Unidos, Canadá e, em menor escala, Europa.
Neste ano, o aquecimento estratosférico ocorre de forma incomum e muito antecipada, algo observado apenas algumas vezes nos últimos 70 anos. Os modelos de previsão mostram que o aquecimento começará de forma mais intensa nos próximos dias.
A temperatura na estratosfera, entre 30 km e 50 km de altitude, pode subir até 40°C acima do normal em apenas alguns dias. Esse salto térmico empurra o ar quente para dentro do núcleo do vórtice polar, deformando sua estrutura e reduzindo drasticamente a força dos ventos.
Se os ventos ao redor do vórtice chegarem a se inverter — movimento considerado o “sinal oficial” do evento — será classificado como um SSW (Sudden Stratospheric Warming) de grande porte. Mesmo sem essa inversão, porém, o rápido enfraquecimento do sistema já é suficiente para gerar impactos no tempo em superfície.
Com a estratosfera tão alterada, o efeito tende a “descer” pela atmosfera ao longo de dias ou semanas. Isso faz com que a circulação perto do solo também se modifique. A consequência costuma ser um bloqueio atmosférico no Polo Norte e um enfraquecimento da corrente de jato no Hemisfério Norte.
Quando isso acontece, massas de ar extremamente geladas podem avançar do Ártico para regiões densamente povoadas. Em episódios anteriores de aquecimento estratosférico, como em 1958, 1968 e 2000, os Estados Unidos viveram ondas de frio fortes e neve generalizada em dezembro.
Se o cenário atual se confirmar, a expectativa é de que o frio invada primeiro o Canadá e, depois, os Estados Unidos. Os mapas de previsão mostram anomalias negativas de temperatura se espalhando do Noroeste canadense para os estados do Centro e do Leste norte-americano no início de dezembro.
A tendência inclui temperaturas muito abaixo da média, grandes volumes de neve e maior probabilidade de tempestades invernais. O padrão também aumenta a chance de um Natal com neve em áreas que, nos últimos anos, tiveram festas mais amenas.

Modelos indicam enorme aquecimento da estratosfera sobre o Ártico no fim de novembro e o começo de dezembro | GIUSEPPE PETRICCA
Na Europa, a resposta costuma ser mais fraca quando o aquecimento ocorre tão cedo na temporada. Ainda assim, o Norte e o Noroeste europeu podem sentir incursões de ar frio, especialmente Reino Unido, Escandinávia e partes da Alemanha. Mas não há, por enquanto, sinal de frio extremo como o previsto para a América do Norte.
Meteorologistas norte-americanos também observam como esse fenômeno vai interagir com a La Niña, que já influenciaria o inverno por conta própria. Segundo especialistas, a La Niña tende a orientar o caminho das massas de ar frio, enquanto o vórtice polar determina quão intenso será o resfriamento.
Se houver forte acoplamento entre o aquecimento estratosférico e a circulação da baixa atmosfera, dezembro pode ser bem mais frio e com mais neve do que o previsto inicialmente nas projeções de clima. Caso esse acoplamento não ocorra, o clima no inverno setentrional pode acabar sendo mais ameno.
Por enquanto, o consenso é que o Hemisfério Norte entra nas próximas semanas em um momento decisivo. O comportamento do Vórtice Polar até o fim de novembro deve definir como será o início do inverno para centenas de milhões de pessoas no Hemisfério Norte.
Há impactos no clima do Brasil pelo colapso do vórtice polar?
Um aquecimento súbito estratosférico (SSW) no Ártico é um fenômeno característico do inverno boreal, do Hemisfério Norte, quando o vórtice polar no Ártico colapsa e as temperaturas da estratosfera sobem rapidamente.
Embora o evento ocorra exclusivamente no Norte, a literatura científica mostra que ele pode gerar efeitos indiretos no clima do Hemisfério Sul, ainda que de magnitude bem menor e dependentes de teleconexões atmosféricas globais.
A chave para essa influência está no acoplamento entre estratosfera e troposfera por meio de ondas planetárias de grande escala, como demonstrado em estudo por Baldwin e Dunkerton (2001) no Journal of Geophysical Research, em que os autores descrevem como perturbações estratosféricas no Norte podem modificar padrões de circulação que se projetam para regiões tropicais e, depois, para o Sul.
Estudos como Garfinkel et al. (2012), publicados no Journal of Climate, mostram que essas mudanças funcionam como um canal de transmissão inter-hemisférico: aquilo que acontece no Ártico reconfigura os trópicos, e os trópicos, por sua vez, modulam o padrão climático do Hemisfério Sul.
No Hemisfério Sul, o impacto não envolve colapso do vórtice polar — que é mais estável e menos suscetível a ondas planetárias —, mas aparecem respostas sutis. A principal delas ocorre no Modo Anular do Hemisfério Sul (SAM), a chamada Oscilação Antártica.
Diversos trabalhos, como Kren et al. (2016) em Geophysical Research Letters, mostram que algumas semanas após um colapso do vórtice no Ártico tende a surgir uma fase levemente negativa da Oscilação Antártica, o que implica redução da pressão atmosférica em latitudes médias e um deslocamento modesto do jato subtropical. Essa resposta, porém, é fraca.
A Osciclação Antártica em fase negativa nesta época do ano favorece (1) mais ciclones no Atlântico Sul, (2) mais incursões tardias de ar frio no Sul do Brasil, e (3) aumento da chuva no Centro-Oeste e no Sudeste do Brasil.
Entenda o colapso do vórtice polar
Um cinturão de ventos mantém o ar extremamente frio na região do Ártico. Funciona como se fosse uma barragem de vento que segura o ar congelante nas latitudes altas. Nos últimos dias, esta barragem veio abaixo e o vórtice polar se transferiu para a fronteira dos Estados Unidos com o Canadá. Com isso, o ar por demais gelado escapou para as áreas ao Sul da América do Norte.
Estudos sugerem que o aquecimento do Ártico está enfraquecendo a corrente de jato polar, fazendo com que ele fique mais ondulado e permitindo que episodicamente o ar extremamente gelado avance para o Sul em áreas do Hemisfério Norte com eventos de frio de grande magnitude. O Ártico é a região que mais está aquecendo no mundo e a taxa de elevação da temperatura na região tem sido três vezes maior que no restante do mundo.
A questão do impacto do aquecimento global influenciando eventos extremos de frio no Hemisfério Norte, contudo, não é um consenso ainda na ciência e é muito complexa. Para a cientista da NOAA Amy Butler, não há evidências ainda de longo prazo demonstrando mudanças no padrão do vórtice polar que ocorrem, segundo ela, naturalmente e sem a intervenção humana.
Se a estratosfera aquecer repentinamente, será o primeiro evento desse tipo em novembro desde que os registros precisos por satélite começaram. Houve dois eventos conhecidos na era pré-satélite, em novembro de 1958 e 1968, conforme a climatologia do Hemisfério Norte.

