O Rio Grande do Sul recorda neste fim de abril e começo de maio o maior desastre de sua história em consequência de um episódio de chuva extraordinário que trouxe as piores inundações já testemunhadas no estado com enchentes catastróficas.

Centro de Porto Alegre inundado em maio de 2024 | NELSON ALMEIDA/AFP/METSUL
O balanço oficial da chuva e das enchentes do fim de abril e maio de 2024 indicava neste fim de abril de 2025 um total de 184 mortes, 25 desaparecidos, 806 feridos e 2,4 milhões de pessoas afetadas em 487 municípios gaúchos.
Houve registro de fatalidades em 56 municípios gaúchos, de acordo com levantamento da Defesa Civil do Rio Grande do Sul. As cidades com maior número de vitimas no grande desastre de 2024 foram Canoas (31), Roca Sales (14), Cruzeiro do Sul (13), Bento Gonçalves (11), São Leopoldo e Caxias do Sul (9), Gramado (7), Eldorado do Sul (6), e Porto Alegre, Venâncio Aires e Veranópolis (5).
Os maiores rios do Rio Grande do Sul, com exceção do Uruguai, atingiram as suas maiores cotas da história em 150 anos de medições. As cheias foram recordes nos rios Jacuí, Taquari-Antas, Caí e Sinos, e todos têm suas águas desaguando no Guaíba e na Lagoa dos Patos, onde a enchente foi também recorde.
O número final do pico da enchente em Porto Alegre no pórtico central do Cais Mauá, local de referência histórica para as cheias do Guaíba, foi calculado pelo Serviço Geológico Brasileiro em 5,12 metros, acima dos 4,76 metros da enchente de 1941.
A chuva que caiu no Rio Grande do Sul entre o fim e abril e o começo de maio do ano passado foi descomunal. Somente em Porto Alegre, considerando a área do município e a chuva média observada na cidade, de 27 de abril a 31 de maio, mais de 300 bilhões de litros de água caíram do céu.
Os números no Estado são impossíveis de calcular pela baixa capilaridade de estações meteorológicas, mas são astronômicos. Na usina de Dona Francisca, no fim de abril, foi atingida a capacidade máxima do vertedouro (10.600 m³/segundo), valor equivalente à cheia decamilenar, logo o tempo de recorrência ou retorno estimado em 10 mil anos.
Os dados das estações meteorológicas mostraram que a chuva reescreveu a história do clima gaúcho. Jamais, desde o começo das medições, entre 1910 e 1913, havia chovido tanto e em tão curto período em diversas cidades.
Santa Maria anotou 213,6 mm em 24 horas, o maior acumulado diário em 112 anos de medições, superando o recorde de 182,3 mm de 23 de junho de 1943.
Porto Alegre, com dados de 1910, teve em maio não só o maio mais chuvoso já observado como o mês com maior precipitação da série histórica com 539,9 mm, superando o segundo que havia sido setembro de 2023, apenas poucos meses antes.

Guaíba invadiu Porto Alegre no pior desastre da história da cidade de mais de 250 anos | RAFA NEDDERMEYER/AGÊNCIA BRASIL

Município de Cruzeiro do Sul, no Vale do Taquari, foi devastado pela cheia recorde do Rio Taquari | NELSON ALMEIDA/AFP/METSUL
Os acumulados de chuva entre o fim de abril e o fim de maio, em intervalo de 35 dias, ficaram entre 500 mm e 1000 mm em quase todo o Estado. Vários municípios anotaram acumulados em dias equivalentes a um terço e até a metade da climatologia do ano todo. Casos do Vale do Taquari e da Serra, onde choveu mais de 1000 mm.
A precipitação acumulada entre 27 de abril e 31 de maio de 2024 somou em registros de estações meteorológicas 1.023,0 mm em Caxias do Sul, 1.014,6 mm em Lajeado, 967,4 mm em Canela, 961,0 mm em Bento Gonçalves, 884,0 mm em Soledade, 782,3 mm em Santa Maria, 780,2 mm em Rio Pardo, 748,0 mm em Cambará do Sul, 731,0 mm em Campo Bom, 690,3 mm em Porto Alegre, 592,0 mm em Tupanciretã, 586,8 mm em Tramandaí, e 558,0 mm em Vacaria.
O período crítico da chuva se concentrou em poucos dias entre o fim de abril e o início de maio, quando várias cidades somaram mais de 500 mm em apenas uma semana de precipitação.
Em Canela, na Serra Gaúcha, a precipitação na estação do Instituto Nacional de Meteorologia entre os dias 26 de abril de 2024 e 7 de maio de 2024 somou 569,4 mm. No mesmo período, a estação convencional do Instituto Nacional de Meteorologia em Caxias do Sul indicou precipitação espantosa de 702,3 mm.

Canoas foi a cidade com mais vítimas fatais na enchente e que passaram de 30 | CBMSC
Em Porto Alegre, a precipitação na estação convencional do órgão federal no bairro Jardim Botânico no fim de abril e na primeira semana de maio do ano passado chegou a 362,7 mm. Em Santa Maria, no Centro do estado, a chuva somou no fim de abril e na primeira semana de maio de 2024 um total de 530,3 mm, sendo que em apenas três dias choveu 470,7 mm.
No Norte do estado, em Passo Fundo, onde a chuva tem forte influência na bacia do Rio Jacuí, que é o principal contribuinte do Guaíba em Porto Alegre, a precipitação entre o fim de abril e o final da primeira semana de maio do último ano bateu em 298,5 mm, mas mais ao Sul e também na área de influência da nascente do Jacuí caíram 610,2 mm em Soledade entre 26 de abril e 7 de maio de 2024.
Cenário em 2025 é radicalmente distinto do ano passado
O risco de uma nova enchente do tamanho de 2024 hoje é extremamente improvável. Isso porque o cenário que levou ao desastre do ano passado não está presente nos dias atuais. Ao contrário, em vários aspectos é muito diferente.
As maiores médias de chuva mensais no ano ocorrem no inverno e na primavera no Rio Grande do Sul, mas foi no outono que se deram as duas grandes enchentes da história gaúcha e quase na mesma data, no começo de maio de 1941 e no início de maio de 2024.
Em comum entre as duas grandes enchentes, havia a presença do fenômeno El Niño atuando no Oceano Pacífico Equatorial. Na enchente da década de 40, um forte a intenso evento do fenômeno era registrado, o que se repetiu em 2024.
A história mostra que no outono do ano seguinte ao começo de um evento de El Niño cresce muito o risco de enchentes no Rio Grande do Sul, o que se verificou em muitos anos e particularmente em 1941 e 2024.
Os dados analisados mostram no presente momento um padrão atmosférico regional e global de circulação da atmosfera muito distinto do ano passado. O ano de 2024 teve início com um episódio ainda muito forte de El Niño, que foi gradualmente perdendo intensidade no primeiro trimestre. Já 2025 começou com um evento de La Niña que causou uma estiagem que deixou mais de 60% dos municípios gaúchos em emergência pela irregularidade ou escassez de precipitação.
Para os próximos meses, a tendência é de manutenção do quadro de neutralidade no Oceano Pacífico Equatorial, de acordo com as estimativas da NOAA, a agência de tempo e clima do governo dos Estados Unidos.
Conforme a mais recente atualização mensal da NOAA, publicada poucos dias atrás, para o trimestre abril a junho de 2025, os valores informados de probabilidade foram 7% de La Niña, 91% de neutralidade e 2% de El Niño. No trimestre de maio a julho, 11% de Niña, 81% de neutralidade e 6% de Niño.
Já no trimestre de junho a agosto, o de inverno, 19% de probabilidade de Niña, 68% de neutralidade e 13% de Niño. Por sua vez, no trimestre de julho a setembro, 26% de probabilidade de Niña, 59% de neutralidade e 15% de Niño. No trimestre de agosto a outubro, 31% de La Niña, 52% de neutro e 17% de El Niño.
No trimestre de primavera, de setembro a novembro, a NOAA projeta hoje probabilidades de 34% de Niña, 48% de neutralidade e 18% de Niño. Finalmente, no último trimestre do ano, de outubro a dezembro, as probabilidades são de 37% de La Niña, 45% de neutro e 18% de El Niño.
Ou seja, uma das principais causas do desastre do fim de abril e de maio de 2024 no Rio Grande do Sul não está presente. Não há El Niño hoje e, ao contrário de 2024, os meses precedentes ao outono foram de Pacífico mais frio do que a média enquanto em 2023-2024 foram de temperatura do mar muito alta.
É importante salientar que cheias de rios no Rio Grande do Sul podem ocorrer com o Pacífico em qualquer dos seus estados (Niño, Niña e neutro), mas o risco aumenta demais na fase quente (Niño). Um exemplo de grande enchente sem El Niño foi a cheia do Taquari de julho de 2020, após o ciclone bomba, que atingiu 27,55 metros no porto de Estrela.

Fim de 2023 e o começo de 2024 foram de forte El Niño enquanto o começo de 2025 foi com La Niña muito fraca | IRI
Mas não apenas o Pacifico foi determinante para a catástrofe climática do outono de 2024 no estado gaúcho. O Atlântico foi também extremamente relevante para a chuva com volumes excepcionais. Atlântico Tropical Sul teve aquecimento sem precedentes nas semanas que precederam a grande enchente no Rio Grande do Sul
As semanas que precederam a grande enchente de 2024 tiveram temperatura do mar muitíssimo acima do normal e em patamares recordes no Atlântico Tropical, tanto Norte como Sul. Os níveis de aquecimento do Atlântico Tropical foram recordes nos primeiros meses de 2024, o que levou a um intenso debate científico sobre as causas (aerossóis, erupção do Hunga Tonga, poeira do Saara e etc.).
Semanas antes da grande enchente, a MetSul Meteorologia publicou diversos materiais sobre o aquecimento espantoso do Atlântico Tropical e chegou a destacar que os cientistas estavam alarmados com o que viam à época. Atlântico Tropical com aquecimento recorde em abril de 2024.

Atlântico Tropical Sul teve aquecimento sem precedentes nas semanas que precederam a grande enchente no Rio Grande do Sul | NOAA
Hoje, o cenário no Atlântico Tropical é muito distinto. A região possivelmente é que no momento apresenta a maior variação de temperatura em relação ao mesmo período do ano passado entre os oceanos do planeta. As águas estão com temperatura muito menor que em março e abril de 2024.
As enchentes do fim de abril e maio de 2024 foram consequência de complexo cenário oceânico-atmosférico que parte das causas foram de variabilidade natural do clima (El Niño), mas parte originada pela atividade humana, o aquecimento do planeta.
O aquecimento do planeta e as médias globais de temperatura seguem muito acima da média do período pré-industrial (1850-1900) nestes primeiros meses de 2025, mas apenas levemente abaixo do observado em 2024, o que é preocupante porque no começo de 2024 havia El Niño, que aquece o planeta, e em 2025 havia La Niña, cujo efeito é o oposto.
E o futuro?
O firme entendimento da MetSul Meteorologia é que não se deve questionar se haverá ou não uma nova grande enchente no futuro, pois haverá. Assim, não é uma questão de “se” e sim de “quando”.
A grande questão é o “quando”, para o qual não se tem uma resposta. Não há qualquer estudo que mostre quando exatamente haverá uma repetição do ocorrido em 2024 porque impossível prever. Qualquer afirmação que fixe data, como, por exemplo, em 30 anos, é absolutamente especulativa e está no terreno do “chute”.
O que se pode prognosticar é que, diante das mudanças climáticas, o tempo de intervalo ou recorrência entre estes eventos tende a diminuir. O planeta seque aquecendo e de forma mais acelerada nos últimos anos. Quanto mais aquecer, menor será o intervalo entre estes episódios extremos.
O que também pode se projetar, com base no histórico, é que o risco de uma enchente de grandes proporções cresce dramaticamente durante episódios de El Niño, sobretudo fortes a intensos. Assim, todos os próximos eventos de El Niño serão um sinal de alerta para a possibilidade de um novo episódio de chuva excepcional.
À medida que o planeta segue aquecendo, e juntos os oceanos, e o Atlântico Tropical com aquecimento recorde teve influência enorme no desastre gaúcho, cresce o risco de que eventos de El Niño mesmo não intensos como 2023-2024 possam produzir condições semelhantes. Aliás, o episódio de El Niño de 2023-2024 não foi tão forte quanto os de 1982-1983, 1997-1998 e 2015-2016.
Trabalho científico conduzido na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), em 2015, de Valéria Borges Vaz, sobre enchentes em Porto Alegre, estimou a recorrência da cheia de 1941 em 114 anos. As mudanças climáticas aceleradas nos últimos dez anos, entretanto, parecem ter diminuído o valor da recorrência. O desastre de 1941 se repetiu 83 anos e, coincidentemente, na mesma data.
Desde a enchente de 1941, a cheia de 1941 foi apenas a quarta vez em que o Guaíba alcançou a cota de transbordamento de 3,00 metros no Cais Central. Entre 1941 e 1967 (3,11 metros) foram necessários 26 anos para a marca fosse alcançado. Depois foram precisos outros 56 anos para que a marca fosse atingida. Entre 2023 e 2024, em apenas nove meses, o Guaíba bateu a marca de 3,00 metros em três oportunidades: setembro e novembro de 2024 e maio de 2024.
Os intervalos de décadas do período 1941-2023 foram de semanas no segundo semestre de 2023 e de meses entre o final de 2023 e maio de 2024, portanto uma condição que pode ser descrita como excepcional e dentro de um contexto histórico uma anomalia estatística.

IPCC/BERKELEY EARTH
A grande enchente ocorreu sob aquecimento do planeta de 1,5ºC acima do período de referência do período pré-industrial (1850-1900). Modelos projetam, considerando as atuais taxas de emissões, um aquecimento de 2,5ºC a 4ºC nas próximas décadas. Há projeções ainda piores.
Confirmando-se um cenário de aquecimento nestes níveis para as próximas décadas, a tendência é que o tempo de recorrência das grandes enchentes seja drasticamente menor, ou seja, o que até o passado recente era um evento raro pode passar a ser mais comum, o que exigirá nível de planejamento e investimento gigantesco para mitigação dos desastres que dificilmente poderão ser impedidos.
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