O Rio Grande do Sul voltou a testemunhar neste fim de semana imagens de enchentes com pessoas sendo resgatadas e moradores deixando suas casas para abrigos ou moradias de amigos e parentes com a inundação que tomou conta de parte de São Lourenço do Sul, onde as águas da cheia do Arroio São Lourenço atingiram cerca de duas mil casas levando o município a decretar estado de calamidade.
Primavera tem histórico de enchentes no Rio Grande do Sul | NELSON ALMEIDA/AFP/METSUL/ARQUIVO
O estado não experimenta um ano tão dramático de enchentes como 2023 e 20424, mas é o terceiro ano seguido em que o Rio Grande do Sul sofre com inundação e ao menos uma das cheias deste ano foi de grande dimensão e com valores históricos.
Em 2023, o período de grandes enchentes começou em junho com um ciclone junto ao Litoral Norte que provocou graves inundações no município de Caraá e outras cidades do Litoral Norte, trazendo volumes extremos de chuva ainda para a Grande Porto Alegre. As inundações repentinas deixaram um saldo de 16 mortos.
Apenas três meses depois, em setembro, o Rio Grande do Sul enfrentou duas grandes enchentes. Uma foi catastrófica no Vale do Taquari e deixou saldo de mais de 50 mortos. Em Porto Alegre, o Guaíba transbordou e superou a cota de inundação pela primeira vez desde setembro de 1967.
Somente 50 dias depois, o estado gaúcho voltou a enfrentar grandes enchentes. No mês de novembro de 2023, outra vez rios subiram muito e Porto Alegre mais um vez viu o nível do Guaíba atingir cota de inundação, alcançando quase 3,5 metros, no maior nível desde 1941.
O pior, entretanto, viria alguns meses depois. Um episódio de chuva extraordinário castigou o Rio Grande do Sul no final de abril e na primeira semana de maio de 2024, trazendo até 1000 mm de chuva em poucos dias na Serra com milhares de deslizamentos de terra.
Rios como Jacuí, Caí, Taquari e Sinos atingiram as maiores cotas já medidas, com registros desde o século 19. Porto Alegre viu o Guaíba invadir a cidade com 5,13 metros no Cais. Oficialmente, 185 pessoas morreram no estado, mas o saldo não inclui mais de 20 mortes por leptospirose.
Agora, em 2025, três meses do ano tiveram cheias no Rio Grande do Sul. As primeiras se deram no mês de maio, mas não chegaram a ser grandes. Já em junho, com um evento de chuva com mais de 500 mm no Centro gaúcho, o Rio Jacuí em Cachoeira do Sul igualou a cota da enchente de 1941 como a segunda maior da história. O Guaíba superou a cota de inundação no Cais Mauá com 3,01 metros. Agora, nova cheia no Sul do estado em São Lourenço do Sul.
Haverá enchentes na primavera?
A primavera é uma estação de transição climática, entre o inverno e o verão, e como tal costuma ter extremos no clima do Rio Grande do Sul. Algumas das maiores enchentes da história se deram na estação, como setembro de 1967, setembro de 2023 e novembro de 2023. Não é possível se prever uma enchente específica semanas ou meses antes, mas apenas avaliar o cenário de maior ou menor risco.
Considerando o histórico climático e uma tendência muito clara dos últimos três anos de aumento de eventos de extremo de chuva no Rio Grande do Sul, é natural se questionar se há o perigo de chuva excessiva e de enchentes na primavera de 2025 no estado.
Para responder a pergunta é preciso fazer uma análise sob vários aspectos, incluindo as condições do Oceano Pacífico, projeções de modelos de clima, oscilações intrasazonais e, obviamente, o cenário de mudanças climáticas.
Inicialmente, a anomalia de temperatura da superfície do mar no Pacífico Equatorial Centro-Leste – região do oceano usada oficialmente para designar se há El Niño ou La Niña conhecida como Niño 3.4 – está em -0,3ºC, ou seja, na faixa de neutralidade (-0,4ºC a 0,4ºC).
Já perto da costa da América do Sul, as águas superficiais no Pacífico Equatorial junto aos litorais do Peru e do Equador, região que é denominada de Niño 1+2, estão mais quentes do que a média com anomalia de 0,6ºC, mas sem caracterização ou previsão de El Niño costeiro.
Estivéssemos sob El Niño ou na iminência de um episódio, o risco de enchentes durante a primavera seria altíssimo para não dizer quase uma certeza, mas os dados apontam que no decorrer da estação neste ano a tendência é contrária, de resfriamento das águas do Pacífico Centro-Leste com possibilidade se instalarem anomalias de La Niña.
Sob condições de La Niña ou de neutralidade fria, como se espera nos próximos meses, o risco de enchentes obviamente é menor. Mas, atenção, a história mostra que mesmo com Pacífico frio podem ocorrer cheias de rios no Rio Grande do Sul na primavera, apenas que são muito menos comuns que em anos de El Niño.
Já pelo aspecto dos modelos de clima que fazem tendências de precipitação para meses à frente, os dados hoje indicam uma primavera com chuva abaixo de média na maior parte do Sul do Brasil. O modelos climático europeu aponta que o Noroeste gaúcho poderia ter chuva acima da média no trimestre de setembro a novembro.
Projeção de anomalia de chuva (desvio da média) para o trimestre de primavera (setembro a novembro) do modelo ensemble norte-americano e canadense NMME | METSUL
Projeção de anomalia de chuva (desvio da média) para o trimestre de primavera (setembro a novembro) do modelo europeu SEAS5| METSUL
Aí entra um aspecto extremamente importante que é a observação entre o previsto e o verificado. Modelos de clima não indicavam que maio e junho neste ano teriam chuva muito acima ou muitíssimo acima da média, mas ocorreu.
Mais do que isso. O Jacuí atingiu a segunda maior cota de sua história em Cachoeira do Sul, igualando 1941 (ano de Super El Niño) e somente atrás de maio de 2024 (também com Super El Niño no começo do ano). O Pacífico estava em neutralidade em junho.
Isso é um sinal de alerta de que eventos muito extremos de chuva que no passado via de regra só se davam sob Pacífico muito quente passaram a ocorrer mesmo sem forte ou intenso El Niño, uma evidência de uma clima que está transformado. E que as referências do passado não mais são garantia de segurança para o futuro.
Uma possível explicação está no componente de vapor d´água na atmosfera planetária que, embora não esteja hoje em valores recordes como 2024, apresenta ainda valores muitíssimo acima das última décadas com um salto nos últimos cinco anos, acompanhando maior aquecimento do planeta (atmosfera mais quente retém mais vapor).
Finalmente, considerando as oscilações intrasazonais, merece atenção o indicativo por modelos da chamada Oscilação de Madden-Julian (OMJ), que teria uma fase ativa nas longitudes do Brasil na segunda metade de setembro, o que em tese, aumenta o risco de episódios de chuva volumosa e temporais no Sul do Brasil enquanto no Atlântico Norte agrava o risco de furacões.
Projeção de evolução da OMJ nas próximas semanas | NOAA
A Oscilação de Madden-Julian (OMJ) é um padrão de variabilidade climática tropical que atua como uma onda atmosférica de grande escala, propagando-se de Oeste para Leste entre o Oceano Índico e o Pacífico tropical.
Ela se manifesta por meio de áreas alternadas de maior e menor convecção (formação de nuvens e chuvas), influenciando o clima em várias partes do mundo, inclusive na América do Sul. O ciclo completo da OMJ pode durar de 30 a 60 dias.
Assim, considerando os dados históricos, as condições do Pacífico e as projeções de vários modelos, o risco de grandes enchentes é menor que nos extremos 2023 e 2024, entretanto levando em conta o que ocorreu no outono e inverno deste ano assim como o excesso de vapor d´água planetária não é possível se afastar episódios pontuais de chuva excessiva ou extrema que possam levar a cheias de rios.
Enchente de São Miguel
A chamada enchente de São Miguel faz parte do imaginário popular do Rio Grande do Sul e é cercada de folclore, memórias transmitidas de geração em geração e referências culturais.
O termo está associado ao dia de São Miguel Arcanjo, celebrado em 29 de setembro, quando, segundo a tradição, haveria maior risco de chuvas fortes e cheias dos rios no Estado. O povo do campo e das cidades interioranas costumava repetir que, “se chove em São Miguel, o verão será molhado; se o tempo firma, vem seca pela frente”.
Essa crença nasceu da observação empírica do clima, já que o final de setembro marca a transição entre o inverno e a primavera, período de maior instabilidade atmosférica na região Sul.
Não raro, enchentes históricas ocorreram próximas a essa data, reforçando a ideia de que São Miguel teria relação direta com as cheias. Agricultores, pescadores e ribeirinhos, ao longo do tempo, passaram a usar a data como espécie de previsão popular para safra, pesca e até para definir casamentos e festas comunitárias.
O folclore da enchente de São Miguel também traz forte carga simbólica. Para muitos, a água em excesso representava tanto a purificação quanto o castigo divino. Em comunidades religiosas, não era incomum realizar procissões ou novenas pedindo proteção contra as inundações. Em regiões como o Vale do Taquari, o Jacuí e o Guaíba, onde grandes enchentes marcaram a memória coletiva, a crença se consolidou.
Hoje, mesmo com o avanço da Meteorologia e do conhecimento científico, a tradição permanece viva. Muitos gaúchos ainda recordam a frase dos mais velhos e observam atentamente o tempo em 29 de setembro. A enchente de São Miguel, portanto, não é apenas uma referência ao clima, mas um pedaço da cultura popular, onde fé, medo e experiência se misturam e mantêm vivo um dos mais conhecidos ditos do folclore gaúcho.
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