O frio virou arma na guerra da Ucrânia e uma aposta do presidente russo Vladimir Putin para enfraquecer os ucranianos e a disposição dos países europeus em fazer frente a Moscou. Com a aproximação do inverno e a temperatura despencando, os ucranianos já podem sentir em seus ossos o frio abaixo de zero sem aquecimento antes mesmo da chegada do inverno que será brutal com aquecimento precário ou inexistente em um país com cidades inteiras em ruínas.

Clima ucraniano é extremamente frio no inverno com episódios frequentes de neve e temperatura muito abaixo de zero que já castigaram os ucranianos em fuga da guerra nas primeiras semanas do conflito | LOUISA GOULIAMAKI/AFP/METSUL METEOROLOGIA

Como tática para executar o objetivo de congelar os ucranianos, a Rússia tem bombardeado nos últimos dias centrais elétricas da Ucrânia, valendo-se de drones kamikazes de fabricação iraniana. Ataques russos atingiram a capital Kiev e várias outras cidades ucranianas que alvejaram usinas de energia. O presidente ucraniano, Volodymyr Zelenskyy, disse em uma rede social que os ataques russos desligaram 30% das subestações de energia, causando “apagões maciços em todo o país”.

À medida que o congelamento se instala, aqueles que não fugiram dos intensos combates, bombardeios regulares e meses de ocupação russa no Leste da Ucrânia estão tentando desesperadamente descobrir como enfrentar os meses frios. Na aldeia de Kurylivka, morador empurra um carrinho de mão cheio de toras recém-cortadas pela estrada em direção a sua casa.

Ele conta que que juntou madeira suficiente para durar o inverno inteiro. Ainda assim, planeja começar a dormir ao lado de um fogão a lenha em uma dependência frágil e não em sua casa, já que todas as janelas de sua casa foram explodidas por estilhaços causados por explosões das bombas russas.

As autoridades estão trabalhando para restaurar gradualmente a eletricidade na área nos próximos dias, e os reparos na infraestrutura de água e gás virão em seguida, de acordo com Roman Semenukha, deputado do governo regional de Kharkiv. As autoridades estão trabalhando para fornecer lenha aos moradores, acrescentou, mas não têm previsão de quando os serviços serão restaurados.

As autoridades das áreas controladas pela Ucrânia da região vizinha de Donetsk, muito disputada, pediram a todos os moradores que restaram que evacuassem e alertaram que os serviços de gás e água em muitas áreas provavelmente não serão restaurados até o inverno. Como na região de Kharkiv, onde milhares de casas foram destruídas por ataques russos, com telhados danificados e janelas estouradas que são incapazes de fornecer proteção contra o tempo frio e a neve.

Os problemas de aquecimento atingem outras regiões da Ucrânia distantes do front da guerra no Sul e no Leste do país. A Rússia intensificou a campanha de bombardeios tendo a energia civil como alvo por todo o território ucraniano e deixando muitas cidades e vilas sem eletricidade.

Nina, ucraniana de 62 anos, frita tortas de batata em um forno improvisado a lenha próximo à entrada de um porão usado como abrigo contra bombardeios em um prédio residencial onde mora na cidade de Siversk, Donetsk Oblast, em meio à invasão militar da Rússia lançada na Ucrânia | GENYA SAVILOV/AFP/METSUL METEOROLOGIA

A moradora local Lesya prepara uma refeição quente em um fogão a lenha em um pátio de um prédio residencial de vários andares na vila de Gostomel, perto de Kyiv, em meio à invasão militar da Rússia lançada na Ucrânia | GENYA SAVILOV/AFP/METSUL METEOROLOGIA

Com tantas cidades da região destruídas e sem qualquer conforto algum em suas casas em escombros, a busca pela sobrevivência supera qualquer preocupação com a preservação do que era antes. Sem luz e água, as casas se tornaram abrigos rudimentares como da era medieval, onde os moradores vivem à luz de velas, pegam água de poços e se agasalham para se proteger do frio.

Casal em meio à neve na cidade de Irpin nos primeiros dias da guerra em março deste ano. Será o segundo inverno de conflito militar para os ucranianos após a invasão russa em 24 de fevereiro. | SERGEI SUPINSKY/AFP/METSUL METEOROLOGIA

Refugiados da guerra da Ucrânia enfrentaram frio extremo na estação de trem em Przemysl, Leste da Polônia, perto da fronteira ucraniana-polonesa, nos primeiros dias da guerra no fim de fevereiro e em março deste ano | LOUISA GOULIAMAKI/AFP/METSUL METEOROLOGIA

Onde as bombas não caem, no restante da Europa, a estratégia da Rússia é também usar o frio como arma, cortando o fornecimento de gás. Os governos de toda a Europa se esforçam para evitar o racionamento de energia e os apagões no inverno, mas isso dependerá em parte de algo que não podem controlar: o clima. Segundo alguns analistas, o presidente russo, Vladimir Putin, poderia se beneficiar de um inverno frio ou de um longo período de temperaturas baixas, depois de ter cortado as exportações de gás russo para a Europa em retaliação às sanções impostas pela União Europeia (UE) por sua invasão da Ucrânia.

Uma estação gelada como 2010/2011 ou uma onda de frio prolongada do Ártico como a “Besta do Leste”, que chegou à Europa Ocidental da Sibéria em 2018, pode causar dificuldades e enfraquecer a determinação dos europeus de apoiar a Ucrânia.

“A arma energética tem uma bala e acabou de disparar”, diz Eliot A. Cohen, especialista em segurança do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais da Universidade Johns Hopkins. “Os europeus enfrentarão o pior neste inverno”, comentou à AFP. Muitos governos pediram aos cidadãos que reduzam os termostatos e as empresas para tentar economizar energia, sob os planos da UE de reduzir o consumo de gás em 15% neste inverno em comparação com a média normal.

Nos últimos meses, os países europeus se apressaram para preencher suas reservas estratégicas, comprando suprimentos adicionais a preços recordes da Argélia, Catar, Noruega ou Estados Unidos. As reservas europeias estão em quase 90% da capacidade, dando aos consumidores e empresas uma margem de segurança. “A Europa está bem posicionada para enfrentar o inverno em condições climáticas normais”, aponta à AFP Alireza Nahvi, da Wood Mackenzie.

A comissária da União Europeia para Energia, Kadri Simson, da Estônia, fala durante uma coletiva de imprensa sobre o pacote ‘Economize gás para um inverno seguro’ na sede do bloco, em Bruxelas, em julho. A Comissão Europeia instou os países a reduzirem a demanda por gás em 15 por cento para garantir os estoques de inverno e derrotar a “chantagem” russa. | JOHN THYS/AFP/METSUL METEOROLOGIA

Com tanto em jogo, as previsões meteorológicas tornaram-se especialmente importantes, com as autoridades atentas ao Centro Europeu de Previsões Meteorológicas de Médio Prazo (ECMWF). Seu Serviço Copernicus sobre Mudanças Climáticas produz previsões trimestrais que avaliam a probabilidade de diferentes padrões climáticos no continente, graças a um supercomputador que reúne dados dos serviços meteorológicos nacionais.

“As últimas semanas foram muito ocupadas para nós”, declarou à AFP Carlo Buontempo, diretor do Serviço Copernicus, antes da publicação de sua próxima previsão, para o período de novembro a janeiro. “Este ano, claramente, há um interesse geopolítico no assunto”, acrescentou.

Embora seja muito cedo para fazer previsões precisas sobre o inverno, as indicações preliminares são de que será, no geral, de temperatura acima da média, mas com o risco de ondas de frio intensas e já cedo. “Quando chega o inverno, o que importa é a direção do vento. Se em meados de novembro a dezembro houver ventos fortes do Leste e neve em toda a Europa, isso certamente terá impacto na demanda de gás”, explicou Buontempo.

Por outro lado, após um verão de temperaturas recordes na Europa, o Oceano Atlântico está mais quente que o normal, o que em princípio ajudará a manter a temperatura mais alta quando o vento vier de Oeste.

A Agência Internacional de Energia (AIE) também testou a capacidade da Europa de suportar o inverno sem gás russo. Com base nas temperaturas médias e assumindo uma redução de 9% na demanda de gás, a agência acredita que o continente vai sobreviver sem maiores complicações.

Outro fator importante será o nível de reservas, uma vez que não pode ser acessado em sua totalidade apesar de estar em 90% de sua capacidade. A AIE disse em um relatório que uma onda de frio tardia em fevereiro ou março, quando a pressão é baixa, representaria “o calcanhar de Aquiles da segurança do gás europeu”. “Um episódio que deve ser lembrado é a ‘Besta do Leste’, que já mostrou o quão vulnerável o sistema de gás pode ser em uma onda de frio”, destaca Gergely Molnar, analista de gás de AIE.