A terceira semana de setembro entra para a história climática do Cone Sul da América do Sul por uma sequência de condições extremas do tempo que culminaram em grande onda de tempestades e um dos mais intensos ciclones dos últimos anos na região. Foram vários dias seguidos de enorme instabilidade com muitos transtornos e estragos, além de mortes. Houve o ingresso de ar muito quente para esta época do ano no Sul do Brasil, o que veio a favorecer condições muito extremas. No domingo (16), a temperatura alcançou 38,6ºC em pleno inverno em Santa Rosa, no Noroeste gaúcho. Na segunda (17), o município de Antonina, no Paraná, teve 42,1ºC, segundo dados do Simepar. Não há precedente de uma temperatura tão alta em estação meteorológica no Sul do Brasil no inverno. Mesmo para o verão não se encontra registro tão elevado na parte meridional do país entre os dados do Instituto Nacional de Meteorologia ou centros regionais.
O avanço de ar quente de Norte favoreceu muitos raios. Porto Alegre teve uma sequência de noites com muitas descargas elétricas. Relâmpagos iluminaram a cidade (fotos acima de Fernando Mainar) nas noites de domingo (16), segunda (17) e terça (17). Os números de raios registrados no Rio Grande do Sul entre sábado (15/9) e a quarta-feira (19) são impressionantes. Os sensores do Grupo de Eletricidade Atmosférica (ELAT), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), indicaram no período de 15 a 19 de setembro quase 300 mil descargas atmosféricas no território gaúcho. Foram 99 mil raios nuvem-solo e 192 mil raios intra-nuvem. Só na quarta-feira (19) foram cerca de 40 mil, a metade na madrugada, quando o Norte gaúcho sofria com violentos temporais. Um homem morreu atingido por raio em Tupanciretã no sábado (15). Mapas abaixo (Elat) mostram onde se concentraram os raios entre os dias 15 e 18 no Rio Grande do Sul (cores sinalizam hora do dia e não intensidade, frequência ou número).
Porto Alegre experimentou ainda enormes volumes de chuva. Desde 2009, a cidade não enfrentava um período tão chuvoso. Dados do Sistema Metroclima da Prefeitura acusam que entre os dias 15 e 19 a precipitação variou entre 170 e 220 mm na cidade com o mais alto volume no ponto de medição do bairro São Geraldo. A Capital sofreu com torrencial chuva na tarde de segunda-feira e ao redor das 23h da terça-feira com alagamentos em vários pontos da cidade. Na segunda-feira, o dia virou noite no começo da tarde antes da chuva intensa que transtornou a Capital.
Porto Alegre às 13h25m de segunda-feira por Ricardo Giusti do Correio do Povo
Corte vertical (fatiado) das nuvens de tempestade que estavam sobre Porto Alegre ao redor das 14h25m de segunda-feira a partir de observação de satélite que carrega equipamento de radar a bordo
A chuva caiu em grande quantidade, em muitos locais com volumes extremos, também no interior do Estado. Estações automáticas do Instituto Nacional de Meteorologia, entre os dias 15 e 19, acusaram 262,3 mm em Camaquã, 212,2 mm em Caçapava do Sul, 178,2 mm em Rio Pardo, 150,8 mm em São Gabriel, 139,8 mm em Santa Maria, 102,0 mm em Soledade, e 101,7 mm em Bento Gonçalves na Serra. Estações convencionais indicaram 214,6 mm em Porto Alegre durante o período chuvoso, 134,2 mm em Caxias do Sul, 129,9 em Santa Maria, 128,9 mm em Cruz Alta, 128,7 mm em Bagé (com término do longo racionamento de água), 128,4 mm em Rio Grande, 115 mm em Livramento, 103 mm em Uruguaiana e 100,2 mm em Bom Jesus. Os maiores acumulados, assim, se deram na área de entorno da Lagoa dos Patos com volumes extremos na região entre Camaquã, Tapes e Barra do Ribeiro na segunda e na terça-feira, onde medições locais até acusaram volumes superiores a 300 mm no período. Com isso, a região sofreu alagamentos e inundações. A BR-116 teve que ser interrompida pelo avanço rápido das águas e uma ponte chegou a cair no interior de Camaquã (foto de Paulo Nunes do Correio do Povo).
A maior destruição, contudo, estaria reservada para o fim da tarde e noite da terça-feira, e a madrugada de quarta-feira. O aprofundamento de uma área de baixa pressão no Rio da Prata (ciclogênese) deu origem a uma frente fria que avançou sobre a atmosfera quente no Sul do Brasil. Ao encontrar o ar muito quente na Metade Norte do Rio Grande do Sul houve a formação de supercélulas de tempestade com muitos estragos por vento e queda de granizo. Dezenas de municípios, sobretudo do Noroeste, enfrentaram granizo grande e vendavais severos.
Granizo em Giruá por Andrigo Zambonatto
Granizo em Constantina
Vendaval em Ijuí por Keller Steglich da Rádio Progresso
Vendaval em Ijuí por Roseane Barbian do Portal Ijuí
Granizo em Chiapeta por Rádio Ciranda
Vendaval em São Valério do Sul por Rádio Ciranda
Vendaval em Santo Augusto por Rádio Querência
Vendaval em Santo Augusto por Rádio Ciranda
Granizo em Porto Lucena por Jornal Noroeste
Vendaval em Tapera por Rádio Studio FM
Vendaval em Pejuçara por Prefeitura Municipal
Vendaval em Santo Ângelo por Jornal das Missões
A maior rajada de vento registrada por estação automática se deu em Santo Augusto com 120 km/h. Santa Rosa também teve vento superior a 100 km/h. Acreditamos, contudo, que o vento pode ter atingido rajadas muitos mais intensas em outros locais com marcas de até 150 km/h ou superiores. Na tarde e noite da terça, disparamos repetidos e pesados alertas, por Twitter e rádio, sobre extremo perigo e risco de destruição para o Noroeste. O satélite mostrava nuvens de grande desenvolvimento vertical.
Podemos dizer agora o que não podíamos afirmar publicamente naquela hora sob risco de se gerar pânico. Vendo imagens de radar estávamos muito, mas muito assustados. Era a certeza que alguns locais poderiam ter danos gravíssimos, como se deu. Formações do tipo bow echo (eco em arco) e hook echo (eco em ganho), favoráveis à vento lineares de caráter destrutivo e tornados apareceram sucessivamente por, pelo menos quatro horas seguidas, nas imagens de radar que tínhamos do Oeste e o Noroeste do Rio Grande do Sul, em cenário de tempo extremamente severo.
A instabilidade que assolava o Rio Grande do Sul na noite de terça-feira era tão violenta que forçou grandes desvios de rota de aviões que faziam trechos internacionais na região. Caso do voo da Gol 7680 entre Guarulhos e Buenos Aires (cortesia do @leandrodeps).
A intensa área de instabilidade que castigou o Noroeste do Rio Grande do Sul afetou na mesma hora o Norte da Argentina com temporais destrutivos em Corrientes e, sobretudo, Misiones, onde mil casas tiveram danos. Houve importantes estragos na área de Posadas, onde os telefones de emergência deixaram de funcionar e até antenas foram derrubadas pelo vento. Meteorologistas locais chegaram a descrever a formação de mesociclones.
Na sequência, com o deslocamento para o Norte da instabilidade, violentos temporais de vento e granizo atingiram o Centro e o Sul do Paraguai no fim da tarde e noite da terça-feira. Cinco mil casas foram total ou parcialmente destruídas. Cinco pessoas morreram e um pescador desapareceu no Rio Paraná. Houve prejuízos em Assunção e Encarnación, mas a cidade mais atingida foi Mariano Roque Alonso, descrita pela imprensa paraguaia como “zona de guerra” após a passagem do vento que, segundo análise da Meteorologia do governo paraguaio, tratou-se sim de um tornado (fotos abaixo do jornal ABC).
Na mesma terça-feira, o vento fez estragos também muito ao Norte da Argentina, porém não associado a temporal. Vento seco e quente Zonda que sopra da cordilheira atingiu até 150 km/h em Salta. Houve queda de árvores, destelhamentos, falta de luz e incêndios. Uma pessoa morreu e várias ficaram feridas na cidade.
Muito mais ao Sul, uma área de baixa pressão (que depois daria origem a um ciclone na região) provocou Sudestada no Rio da Prata que castigou duramente a costa de Buenos Aires. O nível do Rio da Prata alcançou 2,7 metros na costa portenha, e provocou muitos alagamentos em áreas costeiras da cidade de Buenos Aires e Grande Buenos Aires como em Quilmes e Tigre (reprodução do jornal Clarin).
O ápice da instabilidade no Cone Sul se deu na quarta (19) com a intensificação de um ciclone extratropical no Rio da Prata. Montevidéu experimentou um dia de pânico, que o jornal El País chamou de “psicose”, e destruição. O ciclone castigou durante toda a quarta a capital uruguaia com chuva forte e vento destrutivo. O maior registro oficial foi de 122 km/h no Aeroporto Internacional de Carrasco, ao meio-dia. Centenas de árvores caíram na cidade. A faixa de areia desapareceu na praia de Pocitos, cartão postal de Montevidéu. Barcos do porto de Buceo foram jogados pelo vento em terra.
Imagens do Subrayado e El Pais
O medo tomou conta da capital uruguaia a partir da metade da manhã, quando o vento se intensificou muito. Vidros de prédios residenciais e torres de escritório eram destroçados. Telhas voavam sobre as ruas. Até o revestimento de prédio chegou a ser arrancado pela força da ventania. Bancos não abriram e empresas interromperam o expediente. Todos shopping centers da cidade foram fechados e alguns dos maiores prédios de Montevidéu como da Prefeitura, Congresso Nacional e World Trade Center foram evacuados pelos danos. Autoridades e imprensa recomendavam à população que não saísse à rua, exceto em caso de extrema necessidade.
Imagens retiradas do Facebook e Twitter
A famosa Rambla costeira de Montevidéu era uma paisagem irreconhecível. Enormes ondas estouravam contra os muros, alagando a avenida que margeia o Rio da Prata. Pelo rádio, os uruguaios eram orientados a evitar a avenida. As cenas do vento extremo e da chuva horizontal na Rambla com as ondas estourando lembravam o que costuma se ver em furacões (impressionante vídeo). Na Plaza Independencia, quase na 18 de Julio, mais importante avenida do Centro de Montevidéu, cordas foram colocadas para que as pessoas atravessam de um lado para o outro da rua sem que fossem arrastadas pelo vento (video).
O vento intenso castigou grande parte do Uruguai. Os departamentos mais afetados foram do Sul e do Leste do país como Rocha e Maldonado. Em Punta del Este, de acordo com a Meteorologia do governo uruguaio, o vento atingiu 172 km/h às 17h. As ruas ficaram tomadas por grande quantidade de areia. Houve casos de pessoas feridas pela força do vento, incluindo o próprio presidente uruguaio José Mujica que lesionou o nariz ao tentar ajudar vizinho com a casa destelhada. Centenas de pessoas ficaram desabrigadas e três morreram.
Beira-mar de Punta del Este ficou coberta de areia (Twitter)
Em Piriáopolis, rua costeira foi tomada de espuma do mar (Twitter)
No Rio Grande do Sul, o vento provocou destelhamentos, muitas quedas de árvores e graves transtornos no abastecimento de energia. Em determinado momento, na noite de quarta, nada menos que 450 mil clientes – entre 1,5 e 2 milhões de pessoas – estavam sem luz nas três áreas de concessão (CEEE, RGE e AES), mas, especialmente, na região da CEEE que teve o vento mais forte no Sul e no Leste do Estado. A rajada máxima de vento decorrente do ciclone no Estado foi observada na barra do Porto de Rio Grande com 65,2 nós ou 120,7 km/h. Estações automáticas do Inmet indicaram 108 km/h em Canguçu, 103,3 km/h em Mostardas, 101,9 km/h em Bagé e Ausentes, 95,4 km/h em Jaguarão, 91,8 km/h em Caçapava do Sul, e 89,6 km/h em Tramandaí. Em Porto Alegre, onde as rajadas ficaram entre 80 e 90 km/h, houve queda de árvores e muita agitação das águas do Guaíba (fotos de Vinicius Roratto, do Instituto de Educação, e Fabiano do Amaral, do Guaíba, do Correio do Povo).
A instabilidade ainda alcançou a Bolívia com dois mortos por chuva na região de Santa Cruz. Chuva intensa e vendavais atingiram ainda o Mato Grosso do Sul e São Paulo com o avanço da frente fria para Norte, mas sem causar vítimas. No total, houve 5 mortes no Paraguai, 3 no Uruguai, 2 no Rio Grande do Sul, 2 na Bolívia e 1 na Argentina. Uma pessoa continua desaparecida na costa gaúcha e outra no Paraguai. (Colaboraram Estael Sias, Luiz Fernando Nachtigall e Alexandre Aguiar)